terça-feira , 26 novembro 2024
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Aula 27 – Nietzsche (parte 3/4)

Luiz Fuganti

Estou planejando fazer com vocês mais duas aulas de Nietzsche – a de hoje e a da semana que vem. Vamos saltar um pouquinho em cima da crítica porque vamos pegar a crítica praticamente dos modos de vida, a tipologia de Nietzsche; então eu acho que essa crítica é já, digamos, a concretude de todo o aspecto teórico de Nietzsche. Hoje vamos fazer um movimento em cima dos tipos ou as figuras do niilismo, ressentimento e má consciência, e já situar alguma coisa do ideal ascético. São três figuras básicas do niilismo.

Niilismo já situamos de algum modo ou de uma forma genérica, que é exatamente o valor de nada que a vida toma. Valor de nada na medida em que o niilismo nega que a natureza tenha uma ordem própria, que a vida tenha uma ordem imanente, uma ordem auto reguladora; e ele se liga então, a partir disso, a valores superiores à própria vida. Nesse sentido o niilismo – ou, aqui, juntando o niilismo com uma das figuras que ele toma, que é o ideal ascético – seria uma negação em relação aos valores imanentes da própria vida. Ele se ligaria a um valor superior que, por tabela, acaba desqualificando a natureza. A questão do ideal ascético, então, orientaria a vida para uma direção extra ou sobrenatural e faria com que a própria vida tivesse uma negatividade. Então essa negatividade da vida ou o modo como a vida é negada vai tomar basicamente duas figuras, que é o que estamos chamando ressentimento de má consciência – e essas duas figuras vão designar em Nietzsche tipos; tipos não apenas psicológicos, mas tipos biológicos, tipos sociais, tipos históricos, tipos ontológicos, em função de uma maneira de ser, de um modo de ser.

Vimos, na aula passada, a questão do corpo em Nietzsche: o modo que Nietzsche define o corpo e o que atravessa o corpo – além dos elementos que o definem, que são as forças. Um corpo é feito de uma pluralidade de forças – no mínimo duas forças, ativa e reativa – e a relação entre as forças traz uma diferença de quantidade; essa diferença de quantidade é o elemento diferencial que deriva da vontade de potência. A própria diferença, o elemento relacional, é a vontade em Nietzsche.

Então a vontade é o elemento relacional entre as forças. Então não há um só corpo que não tenha força e vontade. A vontade não é unitária, a vontade não está num sujeito, a vontade é sempre um elemento relacional entre as forças; é a própria relação das forças. E a relação das forças, como em Nietzsche não tem Substância nem finalidade, se dá sempre no acaso dos encontros; não há nenhuma lei, nenhuma regra, nenhuma finalização da força na sua própria relação. Então a relação está na imanência ou na adjacência do próprio acaso; e se a relação é vontade, a vontade é puro acaso. Então uma vontade que afirma é uma vontade que afirma, necessariamente, o acaso.

Agora, não chegamos a fazer a distinção entre força reativa e tipo reativo. Nietzsche vai dizer que uma coisa são as forças reativas, outra coisa é um tipo reativo. A força reativa tem a sua nobreza, tem a sua função; uma força que reage ou uma força reativa tem a função de limitar a ação, de retardar a ação, de dividir a ação, de se opor à ação, de conservar; enfim, ela tem uma função de regulação, essencialmente. A força reativa não deixa de ser força porque ela é reativa; se ela sofre a ação de uma força ativa, ela não é esmagada pela força ativa, ela não é achatada pela força ativa – ela mantém uma distância, ela mantém uma espessura de realidade. Então a força reativa não deixa de ser força ao se relacionar com a força ativa. A força reativa tem como função básica regular, retardar a ação ou limitar a ação.

A força ativa, por sua vez, tem a função de precipitar a ação; ela precipita, ela cria, ela inventa, ela se apropria, ela gera uma realidade inédita. A força ativa não se detém ou não se resume ou não se limita às condições nas quais ela se efetua; além de ser excitada pelas condições, ela gera algo inédito modificando as condições e modificando a si própria. Então a força ativa é definida na sua plasticidade, a força ativa tem uma capacidade plástica; ela é nobre exatamente porque ela é capaz de mudança, ela é capaz de metamorfose. A definição de nobre em Nietzsche é exatamente o que é capaz de mudar; nobre é o que pode mudar, o que pode se modificar e modificar as outras coisas. Então a força ativa é isso; ela não limita, ela não retarda, ela não divide; ao contrário, ela precipita, ela ousa, ela inventa, ela rasga o real, ela gera algo de novo, é isso que ela faz.

A função nobre da força reativa é ser agida pela força ativa; a força reativa retarda, limita, divide, gera uma distância entre a ação e a reação; e a força ativa torna a precipitar a reação ou a agir a própria reação. Então a função nobre da força reativa é ser agida pela ação ou pela força ativa.

Então a função da força reativa é obedecer à força ativa – a força ativa comanda. Essa relação entre atividade e reatividade é o que Nietzsche define como a grande saúde; não há saúde se a força reativa não obedecer à força ativa. Evidentemente, isso se trata sempre de algo na imanência da própria natureza, no mesmo corpo; não é uma obediência em relação a alguma entidade fora de si – é no próprio corpo que certas forças obedecem a certas outras. Não é uma força reativa obedecendo a uma entidade fora dela. Aliás, isso já vai ser o tipo reativo que vai inventar.

O tipo reativo inventa uma obediência em cima de uma instância de Estado, de Igreja, uma instância transcendente qualquer que inverte a posição hierárquica entre ativo e reativo, inverte as relações de superioridade entre o que é superior e o que é inferior, e faz com que o inferior e o reativo comandem, e o ativo seja submetido ou separado do que pode. Então esse é o nosso problema ético por excelência. Então hoje vamos tratar de um problema basicamente ético – o que é ética e o que é moral, evidentemente.

  • Participante: quando você fala “rasga o real”, o que é isso?

É uma linha gerada por uma intensidade, por uma quantidade de realidade – gera-se uma direção, gera-se um sulco no real, gera-se uma linha, gera-se um processo. A força ativa é capaz de afetar e ser afetada, ela é uma potência de metamorfose; então afetar e ser afetada na efetuação – na efetuação ela gera esse rasgo no real, ela abre um canal, ela abre uma direção, ela dá um sentido. É por isso que o sentido é sempre o sentido de uma força.

  • Participante: eu não entendi essa história da força reativa em relação à força ativa. Você diz: ela não se submete. Então não entendo como se exerce a força dela, se a ativa é que comanda.

Não, não é que ela não se submete; ela se submete sim, mas ela não é esmagada, ela não é achatada, ela não é reprimida. Ela tem a sua função. A sua função é ser agida. Você só reage se você agir a sua própria reação. Nós vamos ver que o homem do ressentimento não reage, ele ressente. É bem diferente.

  • Participante: podemos dizer que a força é reativa muito mais pelo que ela causa do que pela sua origem?

É que aqui efeito e origem não tem muita diferença, porque se você for ver a origem da força, é sempre uma força em relação. E a força em relação está ligada a uma outra força, é uma força que se relaciona com outra força. Uma força que se relaciona com outra força vai ter uma diferença de quantidade entre uma e outra; essa diferença de quantidade é o que diz se uma é ativa ou reativa ou se outra é ativa ou reativa. Então a qualidade ativa ou reativa é recebida na própria relação da força com outra força. Então não há na origem, necessariamente, uma força reativa que seria absoluta e, em si, reativa, porque você só tem força em relação, você não tem força em si, você não tem uma substancialidade da força. Então é só na relação. É por isso que ela recebe a qualificação na relação.

O que ocorre com o tipo reativo? Não a força reativa, mas o tipo reativo. O tipo reativo é aquele que faz com que as suas forças reativas se furtem à ação da força ativa. Porque a força ativa, além de inventar e criar, ela age as suas próprias forças reativas. A força ativa age a força reativa – além de inventar, além de criar, além de gerar realidade. Ela age a própria força reativa.

  • Participante: o que é “age a força reativa”?

Ela faz com que a força reativa reaja, responda. Isso vai ficar um pouco mais claro no final da aula quando falarmos de adestramento de forças. Vamos seguindo porque senão estou sentindo que vamos ter que voltar para a aula passada.

O tipo reativo não reage, ele ressente. E a palavra aqui dá uma sinalização clara: você, ao invés de reagir, você sente e não reage, é isso que ocorre, há um ressentimento. Como é que isso se dá? Nietzsche faz a distinção entre forças que investem a consciência ou que formam a própria consciência, e um tipo de forças que formam um tipo de inconsciente; em Nietzsche há uma pluralidade de inconscientes, mas vamos falar de um inconsciente em especial. Sabemos que toda força ativa é inconsciente, não há consciência na força ativa; a força ativa sempre é inconsciente. Há uma atividade inconsciente que é a atividade mais nobre e mais profunda, é sempre inconsciente; a consciência, no máximo, é função de alguma coisa, é função de alguma coisa que quer obedecer ou que obedece – o que já é resultado de um encontro e faz dessa força reativa uma função de algo maior. A consciência é sempre uma consciência que obedece, é um sintoma de obediência.

Mas ele diz que tem dois tipos de forças reativas que funcionam do seguinte modo: a consciência recebe estímulos. Por exemplo, no encontro de um corpo com outro corpo existe um tipo de força em nós que investe as excitações, que investe os devires, que investe o movimento, que investe a própria impressão enquanto ela impressiona; é a excitação enquanto excita. Então esse tipo de força Nietzsche chama de força reativa da consciência; a consciência investe nos estímulos sempre novos. E essas forças não se detêm nunca, elas sempre investem no próprio movimento, elas não investem nenhuma fixação.

Diz Nietzsche: mas, necessariamente, retemos impressões, retemos imagens, retemos marcas. E não pode ser o mesmo tipo de força que investe a excitação e que investe as próprias marcas; então um sistema de forças, um conjunto de forças reage às excitações e outro conjunto de forças reage às marcas, reage à conservação das impressões ou das excitações. Então um tipo de forças conserva a impressão e outro tipo de forças apenas investe a impressão enquanto está impressionando.

Num tipo saudável, as forças reativas que investem as marcas não são sentidas, elas são inconscientes, elas permanecem no inconsciente. Vamos dar um exemplo aqui: imaginem o alimento que ingerimos. A alimento que ingerimos é processado por nosso estômago, por nosso intestino, e nós não temos consciência do processo; não sentimos o processo, a não ser numa indigestão, na indigestão nós ressentimos o processo. Isso Nietzsche vai usar muito para designar o tipo reativo; um dos epítetos que ele vai usar é o “cu de chumbo”, ele vai chamar o alemão de cu de chumbo, que é aquele que não acaba nada, o dispéptico.

Então, a força reativa que investe as marcas ou que investe na duração ou conservação da impressão permanece inconsciente no homem saudável, no tipo saudável. E, portanto, ela é insensível, porque a consciência, em Nietzsche, está na sensibilidade. Então ela é insensível. E a força reativa que investe a excitação mantém a consciência fluida, mantém a consciência pura em movimento, mantém os fluxos, ela investe puro fluxo. A força reativa investe puro fluxo na consciência. Então é a consciência que Hegel chamaria de consciência ingênua. Nietzsche fica só com essa. Essa é a grande saúde ou a grande nobreza da consciência. A posição nobre da consciência é a consciência que investe a excitação.

Então é ao mesmo tempo que as forças reativas da consciência investem as excitações, e as forças reativas que conservam as impressões, se mantêm recalcadas no inconsciente; mas é necessária uma força ativa para manter essa distância entre esses dois tipos de força reativa. Nietzsche diz: faculdade do esquecimento. Na Genealogia da moral Nietzsche vai dizer que o erro de toda a psicologia foi acreditar que o esquecimento é uma força da inércia, ou um vício, que é algo negativo; e evidentemente nós, como herdeiros do platonismo, temos o hábito de acreditar que o que é esquecido não tem realidade, que só a memória faz a presença de alguma coisa.

Nietzsche diz exatamente o contrário: uma faculdade do esquecimento necessariamente ativa. Ou seja, a faculdade do esquecimento são forças ativas que são funções da atividade que mantêm a consciência sempre limpa, a consciência como uma tábula rasa, a consciência com o seu ar fresco, o seu frescor, a sua pureza. Limpa do que? Limpa de marcas, limpa de impressões que se congelam, limpa de memória – a consciência não tem memória. A consciência deve, na sua nobreza, investir excitações, investir devires, investir os devires, investir os fluxos. Na medida em que a faculdade ativa do esquecimento mantém a consciência limpa, as marcas ficam recalcadas no inconsciente, elas permanecem no inconsciente e vão ter a sua função, mas enquanto uma reserva indicativa de algum processo. Ela é um índice de um processo que não pode invadir a consciência, sob pena de bloquear os devires, sob pena de submeter os fluxos, sob pena de codificar as excitações sempre novas e sempre puras, sob pena de inviabilizar o novo. Seria impossível novas sensações, novas experimentações, novos encontros, se a consciência estivesse invadida pelas marcas.

Agora imaginemos um tipo onde a faculdade do esquecimento não funciona. O tipo onde a faculdade do esquecimento não funciona é o tipo onde as excitações se confundem com as impressões ou com as marcas deixadas. Então a força reativa que investe a excitação e a força reativa que investe a marca vão se confundir. A excitação vai se congelar na superfície; digamos que a cera plástica moldável que é a matéria fluida pura da nossa consciência se endurece e, em cada endurecimento, há uma cristalização, há uma fixação, há uma marca que se torna agora sensível. A marca que se torna sensível impede que o acontecimento sempre novo emerja; a marca que se torna sensível vai impossibilitar o meu deslocamento, a minha metamorfose. Eu vou ser incapaz de me subtrair a aquela marca e aquela marca vai me fixar; necessariamente a marca se torna presente de modo tal que eu não consigo me libertar dela. E por não me libertar dela, eu não consigo reagir, eu apenas ressinto a marca, eu sinto a marca.

Por que a faculdade do esquecimento ora funciona, ora não funciona? Diz Nietzsche: a faculdade do esquecimento, a capacidade de esquecer, é uma função da atividade e é uma condição também da atividade – você só é ativo se o esquecimento for ativo, for presente. É até um paradoxo: a presença do esquecimento; é porque o esquecimento mantém a superfície fluida, mantém o ar fresco da superfície. Mas é da própria excitação, é da própria força reativa que investe o movimento, que investe o devir, que investe a excitação, que a força ativa retira a energia para recalcar a força reativa que investe as marcas. Para manter separados, manter a distância entre os dois sistemas: o sistema que registra o fluxo e o sistema que registra as impressões duráveis. Então é da própria excitação que a energia é retirada.

A força do esquecimento, a capacidade de esquecer, necessita de um aliado. Vamos ver mais tarde que o aliado mais forte da faculdade de esquecer é, aparentemente, algo oposto ou contrário a ela mesma, que é o que Nietzsche vai chamar de atividade genérica da cultura que tem o objetivo de adestrar as forças reativas e gerar uma seleção; e como a seleção é gerada através de uma memória, aparentemente a memória que vai dar uma espessura, uma resistência ou uma consistência a essa consciência, que é puro fluxo, “se oporia” à faculdade do esquecimento. Na verdade, não, na verdade a faculdade do esquecimento vai ser reforçada por uma memória que não é mais memória de marcas, mas é uma memória de futuro, é uma memória de sentido, é uma capacidade de prometer – que vai fazer com que a consciência se mantenha sempre limpa, sempre livre. Então o tipo ativo vai gerar uma consistência na sua própria consciência para que a faculdade do esquecimento esteja sempre presente.

Então voltando: a faculdade do esquecimento – uma vez que retira a sua energia das forças que investem os fluxos, que investem as excitações puras – tem uma certa fragilidade e é em um contexto determinado – que vamos ver mais tarde também – que ela acaba sendo desalojada ou sendo subtraída à sua própria função; ela fica separada do que ela pode, ela fica separada da ação de agir a sua própria reação, a ação de reagir a reação que investe a excitação. Então ela fica separada por isso, na medida em que a reação vai investir ou vai obedecer outra coisa que não a força ativa. O problema é de deslocamento de obediência, de comando. Porque a obediência, sempre há.

É isso que Nietzsche chama de atividade genérica da cultura. Bergson diz: é o hábito de contrair hábitos. Ou é uma certa obediência em relação a um tipo de lei que a atividade genérica da cultura gera.

Evidentemente que o objetivo disso, ou o produto dessa atividade, vai desembocar num indivíduo livre e soberano – indivíduo livre e soberano inclusive da obediência, livre e soberano das leis, livre e soberano em relação à própria atividade genérica. Mas isso já é o fim do processo ou é o processo que liberta ou que libera através da própria atividade genérica da cultura.

  • Participante: a palavra esquecimento não é simplesmente esquecer; talvez manter a faculdade de esquecimento seja a possibilidade de o indivíduo poder mandar sem que ele seja dominado ou subjugado pela marca. Acho que uma frase que eu li, que era de Espinosa, dizia que a melhor forma de esquecer é poder lembrar. Então aí eu penso: de que maneira é possível trabalhar a manutenção da presença da faculdade do esquecimento podendo lembrar sempre – como se você estivesse fazendo uma dobra da marca sobre ela mesma; intoxicar a marca dela própria para que o indivíduo se livre da coisa. Ou não tratar a marca, tratar outras potencialidades possíveis.

Nietzsche responde assim, que não vimos ainda mas estou só designando, por enquanto: adestramento das forças reativas e seleção. Adestramento e seleção são as duas funções da cultura.

  • Participante: então são as duas formas, não é uma coisa ou outra. Seriam as duas formas.

É, os dois aspectos da cultura. Vamos ver o que seriam esses dois aspectos, porque adestrar a força reativa é fazer com que a consciência crie uma memória que é função de futuro; mas a memória que é função de futuro não é um projeto que você vai atingir e não é uma dívida ou uma demanda de uma entidade fora das relações imanentes entre os corpos. Na verdade, é uma demanda da própria vontade de potência que atravessa os corpos todos. Então não é uma entidade fora dos corpos que tem o crédito disso. Vamos ver isso depois porque aí fica um pouco mais claro; agora vai ficar muito abstrato. Vou ver se avanço um pouco mais rápido para chegarmos logo nesse aspecto aí.

  • Participante: você falou que a capacidade de esquecer necessita de um aliado. Acho que eu me perdi aqui. Que aliado é esse?

O aliado é uma faculdade de prometer ou uma faculdade de memória, mas uma memória que não é mais memória das marcas; é uma memória que vai ter uma relação com a linguagem – mas uma relação muito especial com a linguagem. Não são traços linguísticos que vão ser lembrados.

  • Participante: o que é memória ontológica?

É isso que vamos ver depois também. É Bergson que faz uma alusão muito clara à memória ontológica: o passado é. E ela não tem distinção, digamos assim, num sentido, em relação ao virtual – e o virtual é passado e futuro ao mesmo tempo. A memória ontológica é o virtual – ela é real apesar de ela não ser virtual.

  • Participante: Bergson diz que o passado encosta, o tempo todo, no presente e, portanto, atualiza. O presente é esse movimento de atualizar o passado e trazer o futuro para o presente. É esse prometer. Esse passado de que fala Bergson não é passado ao nível de marcas históricas; esse passado não é uma história de vida biográfica, por exemplo. Nesse seu mapa de hoje, o que exatamente significa esse passado? E qual a diferença entre passado e memória? Porque quando você fala “memória”, lembra passado.

Vamos deixar isso para mais tarde porque senão eu não vou chegar a definir o ressentimento. Eu tenho que definir o ressentimento aqui, agora. Eu vou dar uma explicação geral para vocês se situarem.

O ressentimento tem dois aspectos: um é topológico e o outro é tipológico. O aspecto topológico é um deslocamento apenas entre forças, ele é um aspecto material, o aspecto latente. E o aspecto manifesto do ressentimento é o aspecto tipológico, o aspecto formal: é uma forma que dá a direção do próprio ressentimento. E essa forma é gerada ou é desenvolvida por uma ficção e quem desenvolve a ficção é um sacerdote, é o sacerdote judaico. A má consciência é a mesma coisa: tem o aspecto topológico e tipológico. O aspecto topológico da má consciência é uma questão material entre forças, se passa entre forças. O aspecto tipológico já é uma forma desenvolvida por uma ficção e também vai ser encaminhada por um sacerdote – agora o sacerdote cristão. O ressentimento é “a culpa é tua”; a má consciência é “a culpa é minha”; no ressentimento você dirige a acusação para fora de você, na má consciência você dirige a acusação para você mesmo.

Agora, como é que você vai fazer vingar essa crença de que você realmente é culpado? Através de uma ficção. Essa ficção se institui na dívida e a dívida é uma criação já dos homens primitivos, já da atividade genérica da própria cultura. Depois eu vou falar em cultura, vou falar em memória, vou falar em blocos de dívida e em como essa dívida é transformada em dívida espiritual infinita. Porque na memória primitiva é uma dívida finita e material: você promete, você cumpre e você se libera – é o tempo inteiro isso. Mas depois vai haver um triunfo da força reativa ou do tipo reativo. O triunfo das forças reativas vai desviar o objetivo da atividade genérica e o modo como ela se relacionava com a dívida; então é essa ficção.

Na verdade, então, são duas ficções que vamos ter que tratar aqui. A do ressentimento é a ficção do desdobramento da força, que é a suposição de que uma força se divide numa causa e num efeito e de que uma força pode se separar do seu efeito. Isso é uma ficção e vamos ver o que é isso.

E na má consciência a ficção que leva à formalização é a ficção da dívida infinita que leva para uma interiorização da dor; é o sentido interno da dor.

Vamos trabalhar então ressentimento e má consciência. Estamos no aspecto topológico do ressentimento – é o primeiro aspecto, o aspecto material. Tudo se passa, na verdade, entre forças reativas – não é entre força reativa e força ativa; tudo se passa entre forças reativas. A força reativa se rebela, não é mais agida, ela não se submete mais, não obedece mais à ação que age essa própria força e a mantém recalcada no inconsciente, e invade a consciência; quando ela invade a consciência, a marca se torna sensível. Então a marca se confunde com a excitação. Então tudo vira marca.

  • Participante: instala um filtro.

As marcas viram filtros. Você vê, você sente, você ouve – toda a tua sensibilidade é codificada ou sobre codificada pelas marcas ou pela sua incapacidade de se subtrair às marcas. Nesse sentido, então, há um deslocamento de forças: as forças que deveriam permanecer inconscientes e insensíveis, portanto, invadem a consciência, se tornam sensíveis e fazem com que o corpo não reaja mais às suas próprias reações, não aja mais as suas próprias reações e, portanto, não reaja. Mas apenas ressinta, porque ele não consegue mais se subtrair a uma excitação, a excitação se congela imediatamente. Aqui vamos ver o que é um tipo reativo ou um tipo do ressentimento: o homem do ressentimento é incapaz de se subtrair a qualquer marca, toda marca o fixa em alguma coisa. E se a marca o fixa em alguma, ele liga essa marca a um objeto que a produz, a algo fora dele que a produz. E, na medida em que ele é incapaz de se subtrair a essa marca – e essa marca dói, ela é dolorosa, porque ela se torna sensível e ela congela os devires, os fluxos -, ele ressente e, necessariamente, odeia. É automático: você, necessariamente, se torna vingativo. A vingança não é algo que você quer, a vingança já é a tomada das forças reativas que estão no inconsciente. Isso já é uma vingança em relação à vida.

  • Participante: isso é uma das manifestações emocionais. Quando isso vai para o corpo, ferra o corpo do sujeito. Precisa fazer uma leitura do ressentimento no corpo de alguém. Ele não precisa nem falar, você olha e vê.

Perfeito. Isso é material. Isso faz com que uma série de aspectos se desenvolvam nesse tipo.

Por exemplo, se você não consegue se subtrair à excitação, você é fixado e essa fixação já é necessariamente uma dor: tudo dói, tudo se torna muito doloroso. Até as marcas ou as excitações de beleza, de alegria, de amor, até os objetos que aparentemente satisfazem, acabam se tornando objetos doloridos ou dolorosos, porque você é incapaz de entrar em devir, você é incapaz de inventar algo diferente; você fica fixado, você fica congelado por aquele processo. Então o tipo ressentido é incapaz de admirar, de respeitar, de amar a causa das suas alegrias e das suas tristezas. Ele é incapaz de respeitar um inimigo ou de admirar um inimigo; ele é incapaz de amar verdadeiramente o ser amado. Porque, de fato, ele não encontra aquela condição que faria da relação com o ser amado uma relação de crescimento, uma relação de ultrapassamento. Ele impossibilita imediatamente essa relação. Então esse indivíduo que não reage as suas reações, também não age – ele já está separado das forças ativas. Se ele não age, se ele não reage, se ele apenas ressente, ele não pode respeitar, não pode admirar a causa das suas infelicidades, a causa da sua dor, a causa da sua miséria; nem eventualmente a causa de uma alegria ele pode verdadeiramente amar.

O que quer esse homem, o que quer esse tipo? Esse tipo quer ser cuidado, quer ser tratado, quer ser elogiado, quer ser paparicado, quer ser alimentado – quer ser servido, em última instância, quer que o sirvam. Essa é a condição de toda a ideia de ação útil ou de utilidade; não há ideia de utilidade ou de demanda utilitária sem a posição do ressentimento – a utilidade é uma ideia do tipo ressentido. Porque uma ação não tem nada a ver com utilidade ou nocividade, mas o tipo ressentido ressente qualquer movimento exterior como algo que pode ameaçá-lo, algo que o congela, algo que fixa os seus movimentos, algo que o deixa mais pobre, mais miserável, mais triste – enfim, algo que o separa do que ele pode.

Então há uma tendência do tipo ressentido em acusar algo fora dele; mas essa tendência ainda é difusa, ainda é uma postura material, ainda é algo sem forma, algo que muda muito facilmente de forma, toma muitas figuras; vai ser o sacerdote judaico que vai dar a direção a esse tipo de situação ou de acusação e vai inventar um silogismo próprio, um discurso próprio, uma dialética própria de acusação e de inversão de valores. Sacerdote judaico aqui – precisamos lembrar sempre, nunca é demais lembrar – é um personagem de Nietzsche; ele vê o tipo do sacerdote judaico – não do movimento judaico, não do Velho Testamento. Aliás, ele diz que o Velho Testamento se torna reativo quando emerge o sacerdote porque antes disso só tem belezas, tem coisas muito interessantes lá; mas há um devir reativo do povo judaico quando o sacerdote toma o poder. E o sacerdote é que inventa a forma da acusação, que inventa a direção formal da acusação.

O desenvolvimento do ressentimento mesmo se dá a partir do sacerdote; o sacerdote é que vai dirigir a acusação. “Quem te faz mal? ”. “É o faraó. A causa dos nossos males, a causa da nossa miséria, a causa da nossa pobreza e da nossa infelicidade é o déspota egípcio”. Ele vai inventar a direção, ele vai acusar algo fora, necessariamente.

  • Participante: mas o Velho Testamento já começa logo na expulsão: “Quem comeu? ”, “Foi Eva”, diz Deus. Já está culpando a própria Eva. E aí o próprio Deus diz “vai embora”. É tudo ressentimento.

Existe um texto do Espinosa chamado Tratado teológico-político que faz uma análise belíssima das escrituras; e ele vai fazer a distinção clara entre profeta, narrador, o povo mesmo, o sacerdote – uma série de formas e o modo como são montados os livros do Velho Testamento. Inclusive o modo como a língua funciona, porque no antigo hebraico não tem nem vogal, então tem uma série de arbitrariedades ou de interpretações que são feitas a posteriori e se monta o livro chamado A bíblia de modo absolutamente arbitrário, segundo os interesses do próprio ressentimento. Então há que se separar o movimento do povo nômade judaico do tipo ressentido que quer um Estado, que busca a Terra Prometida, que quer o poder. Ninguém mais do que Nietzsche combateu o antissemitismo; aliás, Nietzsche fica indignado, muitas vezes; e ele chega a enunciar para um sujeito que escreve cartas a ele: “não me envie, por favor, mais as suas cartas e as suas publicações, porque eu temo pela minha paciência”. Em outra hora ele diz assim: “o que você pensa que eu sinto quando eu vejo o meu Zaratustra sair da boca de um antissemita ou de um nacionalista alemão? ”. Ele fica absolutamente indignado. Então Nietzsche critica tudo e todos: ele critica os judeus, ele critica os alemães, ele critica as mulheres, os homens, ele critica todo mundo. Porque ele não está criticando de modo pessoal; ele critica o ressentimento, ele critica a má consciência, ele critica o niilismo que atravessa isso tudo.

Então de modo algum você pode dizer que Nietzsche critica uma raça ou um povo, a não ser quando essa raça encarna uma forma de ressentimento, uma forma reativa, uma forma niilista. Só o tipo reativo é que interpreta assim, de forma preconceituosa, a obra de Nietzsche.

Voltando então à questão do tipo ressentido: na medida em que esse tipo sofre, em que é miserável, em que é triste, em que é pesado – porque é cheio de marcas, imediatamente imobilizado pelas marcas -, ele necessita encontrar uma utilidade na ação dos outros – dos que agem, porque ele mesmo não age – e também uma nocividade nas ações que não servem para ele. Ele que precisa ser amado, servido, paparicado, etc., precisa recolher da ação dos outros a energia, esse quantum de realidade; ele próprio é incapaz de ter isso, então ele precisa criar um sistema que o sirva. E mais: um sistema também que julgue aquele que não serve ao seu modo ou à sua impostura de vida, à sua incapacidade de existir ativamente. Então é o tipo ressentido que espera que a ação do outro seja útil e que julga má uma ação que o ameaça ou de que ele não pode extrair nenhuma utilidade.

Então essa questão vai gerar uma forma particular de acusar tudo o que não serve à sua vida. Essa forma particular de acusar vai se desenvolver ou se formalizar na projeção da própria imagem invertida. Vimos na aula passada que no campo das forças, a força ativa não nega a força reativa, ela afirma a sua própria diferença; a força ativa afirma a própria diferença através de uma qualidade afirmativa que atravessa a relação. A força é ativada na medida em que a afirmação da própria vontade emerge naquela relação; então há uma afirmação da diferença da força ativa. E a força reativa simplesmente nem é vista – se ela é negada, ela é negada secundariamente. Mas na medida em que a força ativa afirma a sua própria diferença, ela acaba compondo com as outras forças a sua afirmação; e ela acaba afirmando as outras diferenças por ressonância – a afirmação atravessa as outras diferenças.

Então o ponto de vista da afirmação é um ponto de vista plural: você afirma a pluralidade de vias através da afirmação da sua própria diferença. Você não vê o outro como um oposto a você. Isso que é a força ativa. A força reativa é o contrário: ela está, de alguma forma, como uma função da força ativa. Se ela é função da força ativa, ela serve à força ativa; e se ela serve à força ativa, ela vê a força ativa como um limitador. Então ela não vê outra coisa do que uma oposição a si própria – é aquilo que ela não é; a força ativa é aquilo que a força reativa não é.

Então essa é a imagem invertida na origem. Na origem, onde tem uma diferença de quantidade entre a força ativa e a força reativa, a diferença de quantidade é afirmada pela força ativa e é negada ou limitada pela força reativa: ela é aquilo que ela não é na força ativa. Ela, força reativa, não é aquela diferença que age na força ativa. Então ela vê assim. O tipo ressentido vai projetar exatamente isso.

  • Participante: até aí, nenhum problema com a reativa, desde que ela não se ressinta.

Ela é necessária, ela tem a sua função nobre.

  • Participante: e não uma coisa pejorativa – não nesse momento.

Isso.

  • Participante: às vezes eu confundo crítica e acusação.

O ressentido acusa e o ativo critica como algo agressivo. A agressividade é diferente da violência: a agressividade é leve, é afirmativa, é criativa; a violência é ressentida, é vingativa.

  • Participante: quando pensamos nessa função crítica que Nietzsche faz, na crítica coisa que vai desmontando coisas, não tem um elemento acusativo? Ou é meu ouvido?

Não tem de modo algum. Aliás, a coisa que mais ele insiste até no seu Zaratustra é distinguir o elemento leve e dançarino, que é o próprio Zaratustra, do seu macaco. O seu macaco, o seu bufão, é aquele ressentido, é aquele que ressente, aquele que nega, aquele que acusa.

  • Participante: esse é fácil discernir. Agora o crítico…
  • Participante: em Nietzsche isso não é entendido. Quem lê Nietzsche com olhos ressentidos pensa assim mesmo, tem a impressão de que Nietzsche só tinha ressentimentos, contra as coisas.

Já é uma postura reativa, já é o tipo reativo que não consegue se instalar na atividade; porque a atividade desmonta isso de cara, não tem como você afirmar a sua própria diferença a partir da negação do outro. Você antes afirma e nega por tabela. Aliás, a negação é um aspecto da realidade; a afirmação é sempre plural. A negação é um. E é secundária, é resultado, é resultante. Mas é isso mesmo: a partir do instante em que você se instala numa postura reativa, você não consegue ver o elemento ativo, crítico, leve, que é gerado pela própria crítica.

  • Participante: eu queria pegar uma ideia da aula passada. Você falou da obra de Nietzsche que em nenhum momento a obra dele estava querendo confrontar, não partia para um combate. Para o ressentido todo Belo é uma ameaça. Se o Belo não confronta, como ele pode sobreviver sem sucumbir a uma sabotagem do ressentimento? Como ele se defende e ele se põe, sem confrontar?

É necessário se fazer a distinção entre luta e combate. A luta ou a disputa, digamos assim, remete sempre a uma instância fora da relação: a disputa é entre dois e você remete a um plano que julga. Você disputa os valores, você disputa algo numa relação de forças, numa prova, e, ao vencer, você espera que aquele plano de valores estabelecidos lhe seja atribuído como vencedor. Então algo de fora lhe é atribuído e então você tem o reconhecimento, você é o senhor porque algo lhe foi atribuído.

Nietzsche diz: esse é o escravo, o escravo é que faz isso; o escravo disputa, luta por valores e quer a potência fora dele. Quer o poder, deseja algo fora, algo que não tem. O senhor, em Nietzsche, é o contrário. O que é a potência? A potência é o que quer na própria vontade, ela é imanente à relação; então o senhor não deseja nada fora, ele apenas afirma a sua diferença; e ao afirmar a sua diferença ele já está na sua plenitude, ele não precisa ser reconhecido ou ser rebatido num plano fora dele.

Mas há um combate. Diz Nietzsche: defendei os fortes contra os fracos. Sempre, ele fala isso direto: defendei os fortes contra os fracos. O que ocorre com o ressentimento? O ressentimento age por sabotagem, ele age por subtração. Não é que um tipo ressentido com outro tipo ressentido com mais outro tipo ressentido formam uma força mais forte; não é que os fracos, se somando, formam um conjunto mais forte. Não é assim que a coisa funciona, não é por soma, não é por adição. É por subtração. O tipo reativo se subtrai à atividade, ao adestramento das forças ativas sobre as forças reativas; a força reativa não obedece mais à força ativa, ela vai obedecer a uma outra força reativa, é isso que se passa.

  • Participante: boicote coletivo.

Os rebanhos. É por isso que Nietzsche tanto critica os rebanhos. Os fracos se reúnem em rebanhos e buscam um pastor – até o século XIX; no século XIX já nem um pastor, nem um Deus, e um só rebanho, que a sociedade democrática já expressa na “liberdade, igualdade e fraternidade” francesas, da Revolução Francesa, e a Revolução Industrial. Nenhum pastor, nenhum Deus, mas um só rebanho. Todos somos democráticos, não obedecemos mais nem mesmo a um pastor. E aí, diz Nietzsche, tem um momento interessante, porque aí a vontade de nada – que se aliava com as forças reativas – vai mudar de lado e vai destruir as próprias forças reativas. É o niilismo que se nega a ele próprio. É quase um Bin Laden.

O que o forte diz? “Eu sou bom”. Ele não diz “o outro é mau”, ele diz “eu sou bom”. Quem diz “eu sou bom” não se compara, não diz “eu sou bom e você é menos do que eu”. Em função de que você é menos do que eu? Em função de alguma instância. Ou seja, se você é bom, você não precisa de nenhuma instância; não há comparação possível, você afirma a sua própria diferença. Os valores aristocráticos, os aristói, o que Nietzsche chama de “os melhores”, iniciam por dizer “eu sou bom”. O outro só é mau na medida em que o outro separa a força ativa do que ela pode – aí o outro se torna mau. “Eu sou bom; logo, o outro – que separa a força ativa do que pode – é mau. O outro – que se subtrai ao adestramento das forças reativas – é mau”.

O que faz o tipo ressentido? Ele faz o contrário. Ele diz “você é mau”. O tipo ressentido ressente qualquer coisa que seja ativa, porque a excitação ou a atividade o imobiliza. E ao imobilizá-lo, ele se torna um ser fixado e dolorido; e a dor é a sua própria infelicidade, é a sua própria miséria.

Então ele vai dizer que é mau aquele que age, e é bom aquele que não age. De que modo? Nietzsche brinca, na Genealogia da moral, com um silogismo de um cordeiro; ele diz: o que faz o lobo em relação ao cordeiro? O lobo é o forte, o cordeiro é o fraco; o lobo efetua a sua própria natureza, ele acaba comendo o cordeiro. Mas não é porque o lobo nega o cordeiro; é porque o lobo está realizando a sua própria natureza – ele está efetuando as suas forças se alimentando, se fortalecendo, se compondo. E para o lobo não há possibilidade de separação entre a sua força e o efeito da sua força: isso é inseparável, o lobo é necessariamente ativo.

O cordeiro, na sua visão, diz o seguinte: “você, que quer me comer é mau, porque você que quer me comer, poderia não me comer; você, que age, poderia não agir”. O que existe aí nessa visão ou nesse discurso? Existe uma ficção de que a força se separa do seu efeito; eu tenho uma força que pode não agir. Veja porquê: “você, que age, poderia fazer como eu que, na verdade, não posso agir”.

Eu não ajo porque eu não posso agir, mas eu digo: “veja, eu me abstenho da ação” – eu que, no fundo, não posso agir. Mas eu penso comigo: “eu, que posso agir, não ajo; você, que pode não agir, age; portanto você é mau porque você deveria fazer como eu, se abster da ação”.

O que existe aí? Existe exatamente uma suposição, uma ficção, de que a força é desdobrada em causa e efeito. O efeito da força poderia não se efetuar se a causa não fosse ativada. Como a causa é ativada? A causa é ativada porque se supõe uma vontade atrás da força; supõe-se um substrato para a força, se supõe uma Substância na força; há um sujeito lá atrás que comanda as suas forças e as suas ações – ele pode agir ou não agir, ele pode não desencadear a causa – portanto não gera nenhum efeito – ou desencadear a causa e o efeito. Logo, ele vai ter uma vontade má, se ele desencadear a causa que vai produzir o efeito, ou uma vontade boa se ele se abstiver da ação.

Agora, isso faz com que você veja no outro a culpa da sua infelicidade; o outro – que age – é mau; portanto eu – que posso agir e não ajo (eu que, no fundo, não posso agir e não ajo, eu que apenas ressinto) – sou bom. Essa é a inversão de valores do escravo, do tipo fraco; o tipo do ressentimento faz exatamente isso: o outro que age e que me prejudica, a sua ação é nociva, é mau. O outro que age. Mas se essa ação é intermediada por uma coleta, uma captura de alguma utilidade – alguma serventia dessa ação -, esse é virtuoso, esse é bondoso, esse é piedoso. Então eu vou montar aqui um sistema de utilidade e de nocividade; vai se estabelecer um plano de julgamento da ação que é nociva e da ação que é útil ou boa.

  • Participante: você comentou que Artaud falou que Van Gogh foi suicidado por seu tempo. Então poderíamos dizer que centenas de ovelhas podem suicidar um lobo?

Podem. É exatamente isso que está sendo dito. E quando Nietzsche diz “defendei os fortes contra os fracos” é porque os fracos se reúnem em rebanho; e é o rebanho exatamente que faz com que o território existencial da ação seja solapado. A superfície é retirada do mundo, se forma um abismo e vai haver uma altura e uma profundidade só – a superfície é eliminada, o devir é eliminado.

Nietzsche vai mais longe, ele diz: nós não sabemos o que é um devir ativo das forças; mesmo os homens ativos acabam se tornando reativos, ou há uma tendência a devires reativos, porque o conjunto é todo reativo. Ele diz: não só a humanidade como a terra inteira se torna reativa, onde os homens habitarem. As plantas, sob a relação dos homens, se tornam reativas; os animais, sob a relação dos homens, se tornam reativos. É como um animal no zoológico. Toda a terra se torna reativa sob o peso do homem reativo. São os devires reativos. Então diz Nietzsche: nós não sabemos o que é uma experimentação, o que é uma criação, o que é uma vida plena em devir ativo. Ele diz mais: o Zaratustra dele ainda não é o super-homem, o Zaratustra é a ponte para o super-homem. Ele é o leão, digamos assim, ainda não é a criança.

Claro que isso se passa simultaneamente e sucessivamente em nós; retomamos o tempo inteiro a atividade, caímos na reatividade, voltamos. Mas o problema é o seguinte: o problema dos homens ativos é que eles se tornam reativos apenas na materialidade, mas eles não se formalizam como tipos reativos – nem como tipos do ressentimento, nem como tipos da má consciência, nem como sacerdotes. Eles resistem; às vezes eles ficam mal, enfraquecidos, separados do que podem, mas na pior das hipóteses eles ficam budistas, digamos assim. Eles problematizam o sofrimento, mas não fazem do sofrimento um signo de culpa, eles não têm culpabilidade e nem acusam.

Esse é o sintoma, esse é o signo ou essa é a pedra de toque do homem ligado à reatividade e do homem ressentido. O tipo ressentido é o que acusa os outros ou a si mesmo. E o tipo ativo, mesmo numa situação desfavorável, é o que no máximo, ou na pior das hipóteses, está separado do que pode mas resiste para que isso não tome a direção do ressentimento – nem fora nem dentro, nem no outro nem em si próprio. Não nega o mundo, enfim; sofre mas quer voltar a dar o sentido externo da dor – nunca um sentido interior, nunca um sentido espiritual.

Então vamos ver se avançamos nesse sentido. O que quer o homem do ressentimento, em última instância? Ele quer acusar tudo que há, acusar tudo que ameaça, acusar tudo que é nocivo; recolher o efeito da utilidade da ação dos outros. Então: o que é nocivo, eliminar, acusar, julgar; e o que é útil, fazer servir a si próprio. O homem do ressentimento quer montar um sistema econômico, ele quer montar um sistema utilitário. Não há sistema mais próprio ao ressentimento do que o capitalismo: ele é todo de recolhimento da utilidade da ação do outro, ele recolhe. O homem reativo ou ressentido se sente no direito de recolher uma vantagem da ação do outro; ele é o homem da vantagem, é o homem da utilidade. Ele quer vantagem a toda prova. Então ele quer montar um sistema de poder que garanta a sua sobrevivência, a sua manutenção, a sua demanda – ele que é incapaz de agir, incapaz de criar, incapaz de gerar realidade. Ele precisa de um outro que gere por ele; e esse outro se torna bom apenas na medida em que submete a ação à demanda ou à finalidade do que eu projetei como sendo o meu benefício. Não é à toa que o usuário de Platão está no topo desse plano transcendente; o usuário é um sábio, ele sabe o sentido final de uma ação. O usuário é que submete o artesão, que submete o produtor, que submete o agricultor, que submete o tecelão – submete todos que produzem; o usuário sabe o que você deve produzir: “você deve produzir para satisfazer a minha demanda, para a minha vantagem – eu que não ajo”.

  • Participante: essa ideia de Platão… Na Grécia helênica ou pré-helênica, a questão do abuso, do excesso, a hybris, é o grande pecado.

E o que é a hybris senão uma ação desmedida ou uma desmesura que ameaça a minha existência, e da qual eu não posso recolher a mesma utilidade? Exatamente, é a mesma coisa, é o mesmo processo. Na ação sempre tem hybris, sempre tem excesso – porque a ação sempre tem excedente, ela excede, a ação é isso, a ação é puro excesso. A ação é excesso sobre a realidade, a ação é que gera realidade, ela que cria realidade. Então a ação necessariamente é má para o tipo ressentido. Então você deve docilizar a ação, domesticar a ação selvagem, a ação da hybris, e fazer uma ação comedida – sob o ideal da sophrosyne, em Platão.

  • Participante: evitar o desperdício.

Pior do que isso: evitar ameaças. Porque o excesso ameaça aquele que não age. O excesso não olha a finalidade da sua ação – ele efetua a sua ação e a sua ação vai ter uma pluralidade de efeitos afirmativos. Mas todo efeito afirmativo para o homem que não age é uma ameaça. Então ele é uma bomba explosiva, uma pluralidade de ameaças ao mesmo tempo; ele é excessivo por todas as direções, ele é enlouquecido, ele é pura hybris. É por isso que a ação necessariamente é má.

  • Participante: então a culpa e a acusação nascem com os pecados – os pecados venais, mortais. São excessos.

Espera, você está indo rápido demais. Aí já é a má consciência. Vamos ficar no ressentimento. O que é o homem do ressentimento? Ele quer, então, acusar, espalhar a sua acusação. E ele acaba espalhando de modo que a sua acusação que vai ter um momento sobre a terra que não vai ter mais quem acusar. Mas ele quer mais do que isso: para que de fato o homem do ressentimento monte um sistema de poder e realmente ele triunfe, ele tem que fazer com que o outro – ao qual ele imputa a culpa – realmente assuma a culpa. Esse é o objetivo final do ressentimento, senão ele não triunfa, ele não vinga. Agora, quando o outro assume a culpa, o ressentimento muda de direção. Então o tipo ressentido não vai ficar satisfeito enquanto o tipo ativo, alegre, feliz, não se envergonhar de ser ativo, de ser alegre, de ser feliz. Tem que jogar a vergonha para dentro daquele que é ativo. “É uma vergonha sermos criativos, sermos artistas, sermos livres, sermos felizes, no meio de tanta miséria, no meio de tanta infelicidade, no meio de tanta dor”.

  • Participante: ou uma loucura. É outro mecanismo.

Ou uma loucura. Ou um crime. É imoral em si, é uma imoralidade a tua felicidade, a tua atividade, a tua criação.

  • Participante: aí eu estabeleço princípios.

Então vai haver um momento em que não há mais quem acusar. O que faz o sacerdote judaico? Ele dirige a acusação: “sim, meu filho, você sofre, você é infeliz, você é miserável porque o outro – que age -, o lobo, é a causa da sua destruição, da sua degeneração, da sua fraqueza, da sua miséria. O lobo é o mau; nós, ovelhas, somos bons”. O sacerdote não se confunde com o tipo reativo; o sacerdote precisa do tipo reativo. O sacerdote é uma vontade negar e o tipo reativo é a subtração em relação à atividade. Então uma coisa é o tipo reativo, outra coisa é o sacerdote. O sacerdote quer o poder; o sacerdote só triunfa, só monta o sistema de poder, na medida em que houver tipos reativos; ele só suporta o tipo reativo, ele não suporta o tipo ativo. Ele precisa que a vida se torna fraca, miserável, escrava, mesquinha, impotente; aí o sacerdote cultiva, triunfa, prolifera e forma o poder na terra – ou no céu, não importa onde ele forma esse poder.

E, por outro lado, a força reativa, o tipo reativo só se mantém, só se conserva, se se aliar com o sacerdote; porque o sacerdote vai montar um sistema, vai montar um plano de transcendência, de organização, para que a ação do outro se torne uma ação utilitária – ou julgável, acusável, na medida em que for nociva ou que não for útil, não for vantajosa. Então esse sistema de julgamento, esse plano de julgamento, é montado pelo próprio sacerdote. O sacerdote é que dá a forma ao plano transcendente de organização. Mas a matéria vem do tipo reativo. A matéria é aquela que não age; é a condição material, é a condição topológica – há uma topologia das forças, há uma topologia do desejo, há uma orientação material do desejo que é a condição para que a forma se instale e faça com que de fato o ressentimento vá até suas últimas consequências, para que de fato as forças reativas triunfem. O problema é o triunfo das forças reativas.

Então nesse sistema a acusação vai tão longe que vai haver um momento em que não há mais quem acusar e a ressonância ou o contágio vai ser tão grande que o próprio ativo – agora separado do que ele pode – vai acabar se voltando contra si mesmo.

Mas aqui existe uma ambiguidade. Diz Nietzsche: toda força ativa separada do que ela pode volta-se contra si, volta-se para o interior, gera o interior. Nietzsche diz, na Segunda Dissertação da Genealogia da moral: finalmente esse animal se tornou interessante. O pântano do niilismo, a interioridade cresce quando a força ativa se volta contra si. Ela cresce em profundidade, em largura e em altura. É a interioridade nascente; e essa interioridade vai ser desenvolvida e formalizada com o sacerdote cristão – e, depois, com Kant na filosofia e com a psicanálise. E, evidentemente, no plano material com o capital. Psicanálise, sempre, ortodoxa – e algumas heterodoxas.

No momento em que a força ativa se interioriza, ela vai ter um efeito; porque a força ativa não é simplesmente reprimida, ela não desaparece, ela não some, ela não fica contida; ela volta-se contra si e produz dor. Mas esse efeito vai ser de multiplicação da dor, ela vai multiplicar a dor; é isso que ocorre no plano material. O aspecto topológico da má consciência. Não é ainda “a culpa é minha”; é “eu sofro”. É mais budista, digamos assim.

  • Participante: aí que entra o sacerdote.

Nietzsche nomeia, ele diz que é São Paulo que faz isso.

  • Participante: estávamos no ressentimento e vamos fazer a conexão agora com a má consciência. Ela se instala naquele que é ativo e essa atividade volta contra si; e ele agora começa a perceber isso como uma má consciência. Aquilo que era para fora, que era para ele gerar, rasgar a realidade, agora está rasgando…

Rasga internamente, gera uma interioridade.

  • Participante: agora, estamos falando muito do ponto de vista do pensamento – acusação e volta para si. E do ponto de vista do corpo? É assim também?

É a mesma coisa, é o mesmo processo. Não se separam.

  • Participante: não se separam. Isso quer dizer que uma força impedida se volta contra o organismo, vamos chamar assim?

Também.

  • Participante: é assim que Nietzsche pensa a doença?

Sem dúvida. Ele diz que o ressentimento não é um acidente ou uma forma de doença; toda doença tem a forma do ressentimento. Toda doença.

  • Participante: isso inclui o orgânico. Quer dizer, uma força que não é agida no corpo se volta contra ele, corpo.

Isso.

  • Participante: você sabe onde está isso?

Está na Genealogia. E está no Para além do bem e do mal também. Eu não sei se no Aurora você encontra alguma coisa. No Zaratustra você encontra. Mas Genealogia da moral fala com todas as letras, superclaro, superdidático.

Então: a força se volta contra si mesma e gera uma multiplicação de dor ou de sofrimento. O que vai fazer o sacerdote que Nietzsche designa como sendo cristão? Ou, nomeadamente, o fundador do cristianismo, que ele diz não ser Cristo, mas São Paulo? “Você sofre, meu filho, mas a culpa não é do outro, a culpa é sua mesma; é por sua culpa que você é miserável, que você é infeliz, que você é impotente, que você é fraco, que você é doente. Você sofre porque você é culpado; mas você vai ser redimido, você vai expiar a sua culpa, você vai se salvar pelo próprio sofrimento”. Então, quanto mais você sofrer, mais você se aproxima da divindade, mais você se aproxima de Deus, mais você se liga a Deus. Espiritualizar a dor, dar o sentido interno da dor, o sentido espiritual da dor, é o modo como você se liga a Deus, é o modo como você expia e paga a sua culpa, o seu sofrimento. Enfim, você sofre porque você é culpado, a culpa é tua. Se eu sofro, a culpa é minha.

Assim, você tem uma outra pressuposição ou uma outra ficção para que isso realmente tenha sentido, para que isso faça sentido. Fazer um dor um signo de culpa pressupõe uma ficção – é isso que está sendo dito; e é o sacerdote cristão que é o artista desse tipo de forma, de formatação. O tipo da má consciência, a tipologia da má consciência, é esculpida pelo artista cristão, pelo sacerdote cristão – ou por São Paulo. E como ele vai esculpir isso? Através de uma ficção. E que ficção é essa?

Agora precisamos fazer a análise da cultura. Eu vou tentar ser breve.

  • Participante: isso que você vai introduzir agora encontramos no Humano, demasiado humano?

É na Genealogia. Genealogia é o grande livro, é o maior livro de etnologia ou de antropologia que existe. De longe. Quem não leu ainda a Genealogia da moral não sabe o que está perdendo.

Genealogia tem que ser lido, é uma necessidade para quem quer entender realmente o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético. Fundamental. E ali ele analisa a cultura também. Ele analisa em outros livros, mas na Genealogia ele é completamente didático. São apenas três dissertações. É um livro em que ele não usa aforismos ou poemas; é em prosa, é uma dissertação – a I, a II e a III. A I é o ressentimento, a II é a má consciência e a III é o ideal ascético. É a sequência do Para além do bem e do mal, só que não é por aforismos ou por poemas; é uma análise, é um desenvolvimento em prosa do que é o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético. E ali ele vai analisar a cultura.

O que é a cultura? A cultura, para Nietzsche, é adestramento e seleção. Lembrem-se que vamos falar disso por causa da dívida, do problema da dívida ou da culpa – fazer da dor um signo de culpa. E isso tem origem numa visão fictícia da dívida. Então nós vamos ver o que é dívida na cultura para, depois, entendermos o que é dívida na má consciência. Nietzsche diz que tem a atividade pré-histórica da cultura, anterior à história – e nós vamos entender já o que é esse “anterior à história”, porque no fundo tudo é histórico, mas é num outro sentido que ele está dizendo -, e o produto dessa atividade, que seria o pós-histórico. Entre uma coisa e outra tem a história; e a história, diz Nietzsche, é a própria noite da cultura; a história é a negação da cultura, é o triunfo das forças reativas. Isso que é história.

O niilismo, ou o ressentimento, não é um acidente na história; o niilismo é o próprio motor da história humana; não há história sem niilismo. Essa história que Nietzsche descreve é completamente niilista na essência; e o homem também é niilista na essência. É por isso que o homem é algo que deve ser ultrapassado.

  • Participante: e o conceito de homem?

O conceito de homem é ligado ao tipo reativo, ressentido e com má consciência. Aliás, a forma humana se torna uma forma superior exatamente no século XIX.

  • Participante: isso está ligado ao gênero? Masculino-feminino?

Não. O homem é todo aquele que submete as forças a uma forma de lei.

  • Participante: estou pensando isso por causa do livro de uma antropóloga que fala que existe uma submissão do feminino pelo masculino. E ela faz todo um tratado disso. Foi só por isso que eu coloquei se existe essa colocação em Nietzsche.
  • Participante: Isso seria um efeito da forma homem. Um desdobramento é essa submissão. Os dois fazem esse jogo, o homem e a mulher fazem esse jogo.

Perfeito.

  • Participante: mas é uma análise mais antropológica, de sociedades em que se submeteu. Por isso eu disse sobre o gênero, especificamente. Talvez haja alguma ligação que precisa ser investigada.

Isso você vai ter um texto do Deleuze chamado Kafka, por uma literatura menor. Quando ele fala em “literatura menor”, ele vai dizer que a forma homem é sempre a forma da maioria – mesmo que ninguém seja, que ninguém encarne essa forma. A forma é a maioria, já, por si só. Mesmo que a minoria seja a maioria numérica, a minoria não é nunca formal – a minoria é sempre processo, é sempre devir, é sempre informal. A forma já é a forma do homem europeu, adulto, branco, masculino, etc.

Aí sim você vai ter um desdobramento dessa forma homem de que Nietzsche fala. É uma dica que tem. Existe um desenvolvimento disso no Mil Platôs também.

Voltando: a cultura é adestramento e seleção. Nietzsche diz: é uma atividade genérica. Por que uma atividade genérica? Porque a forma ou o modo cultural de ser é o modo da obediência e do comando. Isso que ele diz. Há algo em você que comanda e há algo em você que obedece. Na forma primitiva, isso se dá na relação entre dois homens, por exemplo, ou na relação entre duas pessoas ou dois corpos, enfim. Essa forma, diz Nietzsche, é anterior a qualquer sociedade; a relação de dívida e crédito, a relação de comando e obediência, a relação de adestramento de certas forças por outras forças. Genérico é a forma da obediência. Ou o que Bergson diz: hábito de contrair hábitos. O que é cultural – ou até o que é natural – é o hábito de se contrair hábitos. Não o próprio hábito – o hábito já é um artifício, já é cultural; mas o hábito de adquirir hábitos é da própria natureza.

E o modo de adestramento ele está dizendo que é da própria natureza também. Adestrar faz parte da natureza. O que é adestrado já é acidental, já é artificial, já é o efeito desse modo de ser. É isso que ele chama genérico ou pré-histórico: é que tudo funciona assim, isso estaria fora da história ou estaria fora de uma particularidade ou de um hábito ou de um adestramento. Isso é o que se faz sempre. E a atividade genérica da cultura então tem como objeto o homem livre e soberano. O princípio dela é o adestramento e a seleção; e o efeito ou o produto é o homem livre e soberano.

O homem, na origem – ou no seu modo primitivo de ser – adestra as forças reativas do corpo, as forças reativas da própria consciência. Por exemplo, ele submete as forças do estômago, ele submete as forças do olhar, as forças do ouvir, as forças que mantêm, que conservam ou que regulam o próprio corpo. Mas ele vai submeter ou adestrar algo ainda mais interessante, que é a própria consciência, através da faculdade de prometer. O homem vai criar para si mesmo uma capacidade que ele não tinha; ele vai gerar uma faculdade, uma potência, uma capacidade que não era natural dele. É a faculdade de prometer.

E, para prometer, você precisa fabricar uma memória – a memória que não é uma memória de marcas. Como o homem faz isso? Ele vai inventar uma mnemotécnica, uma técnica de memória.

O que é essa mnemotécnica? É um modo de fazer com que você disponha do futuro; você traz o futuro para si, você faz com que o futuro seja presente. O mais importante não é você lembrar quando você prometeu; o mais importante é você não esquecer de que você tem uma promessa. O mais importante é você estar disponibilizando o futuro. Então a memória é uma memória de futuro, a memória é uma função do futuro. A memória é uma memória virtual, não é uma memória de marca, não é uma memória formal. É uma memória virtual. Você dispõe um sentido, um valor, uma potência.

Agora, os homens primitivos inventaram uma mnemotécnica, ou várias técnicas, para que isso se efetuasse-as mais violentas, as mais terríveis, as mais arbitrárias, através de um sistema de crueldade. Nietzsche diz: é através de um sistema de crueldade que o homem marca o corpo, marca a carne, funda rituais de passagem e constrói uma memória daquele que é capaz de prometer. A marca da carne se distingue da memória de marca; a marca da carne produz uma dor e a dor é a equação da memória – ou seja, se você esquece aquela promessa, você tem uma mesma quantidade de dor. Então a dor é a sua dívida, a memória é o seu crédito; dívida e crédito, esquecimento e memória – essa é a equação rigorosa que a atividade genérica da cultura inventou para adestrar as forças reativas e para dispor do próprio futuro.

Então a dor é exatamente o castigo para aquele que esquece de dispor do futuro, esquece a promessa. A dor é o pagamento da dívida. A dor faz com que o futuro se mantenha presente; você traz o futuro até você através da dor. Mas o sentido da dor é um sentido exterior, não é um sentido interno, espiritual, é exterior. Por que? Porque a dor é sentido de futuro, é memória, é memória do próprio futuro. A dor é sempre o prazer de alguém – essa é a grande sacada de Nietzsche. É por isso que não tem ressentimento, é por isso que não tem acusação, é por isso que a crítica de Nietzsche é necessariamente alegre: porque a dor, o não, a crítica, é sempre o prazer de alguém.

Mas que prazer é esse? É prazer de uma entidade? É prazer de uma Igreja? De um Estado?

De uma lei fora de si? De uma sociedade, de um povo ou de uma raça? Não, diz Nietzsche, é o prazer da própria vontade de potência; é o prazer de saber que, com aquela disposição de futuro, a minha vontade cresce, a potência aumenta. Você se desdobra, você se compõe, você se expande, você se multiplica, você se alegra, você se torna mais leve. Então o prazer desse alguém é como que um terceiro olho que paira, mas que, ao mesmo tempo, me atravessa; é o Deus em mim ou o Deus que atravessa aquele corpo social inteiro. É o corpo da terra que atravessa os corpos.

Então, se vocês observarem, em qualquer ritual indígena, selvagem, primitivo, o castigo é uma festa, sempre é uma festa; não há choro, tristeza, ressentimento, vergonha, quando você exerce a crueldade sobre um corpo. Sempre é uma festa. Porque a festa é o prazer, exatamente, é o sentido externo da dor. Aquela dor que está sendo infligida é, exatamente, o equivalente de um crédito ou de uma memória ou de uma disposição de futuro, de uma potência, de uma potencialização. É esse o sentido exterior da dor. A dor não é a punição de um culpado. Ou melhor, se há um culpado, o culpado não é responsável por um pecado. O seu pecado é apenas o esquecimento e ele é lembrado por uma equação de dor, por um equivalente de dor. E o equivalente de dor faz com que ele disponha novamente do futuro. Mas não é ele, indivíduo, que dispõe do futuro; é a coletividade inteira que ganha, na medida em que ele acessa a esse futuro.

Então essa é a diferença fundamental entre um sentido externo e ativo de dor, numa equação que envolve três elementos: envolve o que é memorizado, o que é esquecido e o prazer. Envolve sempre esses três elementos. A relação entre o credor e o devedor remete ao prazer de algo que é impessoal, que é transindividual. E esse prazer é sempre um gozo coletivo. Esse é o sentido externo ou ativo a dor. A dor é o prazer de alguém, a dor é o crescimento, a dor gera alegria; a dor é simplesmente um signo ou uma orientação de desejo, é só isso; ela orienta o desejo – é por aqui, não é por ali. Ela adestra as forças reativas. Ela diz assim: você que é caçador não deve comer a sua caça porque isso inviabiliza a coletividade; você caça, submete a sua força reativa estomacal, leva o alimento para o centro da tribo e lá ele é distribuído segundo um outro registro que não o registro individual seu. É a produção de uma memória, é a produção de uma superfície de registro. É isso que o Anti-Édipo chama de superfície de registro: o corpo da terra se torna uma superfície de inscrição, de registro. Você cria só na afetividade. É por isso que a relação primeira não é a de troca, a relação primeira é de dívida e de crédito.

  • Participante: ainda assim é uma relação de dívida. Alguém deve a alguém.

Perfeito. No fundo, você é o próprio credor. No fundo não é nem você, porque não há a noção de indivíduo. A atividade é genérica, é uma coletividade que é credora e que é devedora ao mesmo tempo; ela é devedora na medida em que ela não tece suficientemente a sua superfície de registro; e ela é credora na medida em que a sua superfície de registro, a sua memória, se atualiza ou se torna presente. O que é a sua memória? É a memória de futuro; ela ganha o direito ao futuro ao fabricar esse registro, essa memorização.

  • Participante: que autonomia tem então a diferença? Porque aí ele não é autônomo; de uma ou de outra forma ele se rende a uma coletividade.

Isso. É por isso que o homem primitivo ainda, de alguma maneira, é submetido à coletividade, ainda é submetido a uma forma de lei, ainda é submetido à atividade genérica da cultura.

  • Participante: mas é uma afirmação de vida, isso.

É uma afirmação de vida e de diferenciação. Se é uma afirmação de vida e de diferenciação, onde vai dar a atividade genérica? Na diferenciação pura e autônoma. E a diferenciação pura e autônoma exclui a postura moral, exclui a postura de obediência. O homem se liberta da lei, se liberta da atividade genérica, se liberta do hábito, se liberta do credor porque ele é o próprio credor. É isso que Nietzsche diz que é o produto final da atividade genérica da cultura. Seria esse o objetivo: o indivíduo livre e soberano – livre da moral, livre da lei, livre da dívida e do crédito – porque ele é credor de si mesmo – e soberano.

Autônomo exclui a postura moral. Em Kant não, em Kant autônomo exige a postura moral.

Em Nietzsche, exclui.

  • Participante: mas aí dá para pensar se esse caçador come ou não come a caça.

Se ele come a caça, ele vai ser punido.

  • Participante: isso na tribo, enquanto ele está submetido. Esse novo, de quem você está falando, come ou não come?

Esse come.

  • Participante: e a tribo pode morrer.

A tribo morrer. Melhor que morra. É o sentido do liberalismo, neoliberalismo. O que é essa ordem americana que se impõe aí, que gera um Bin Laden da vida. É exatamente isso, é o sentido individual. Esse sentido individual é absolutamente falsificado. Diz Nietzsche: de grega a cultura se tornou alemã – isso na época dele. Mas podemos dizer que a cultura se transformou no indivíduo burguês, capitalista.

  • Participante: mas eu estava perguntando do homem livre. Esse último de quem você estava falando, o homem livre a ser construído. Ele come ou não come? Ele já submeteu a força reativa, o estômago não manda, não é pelo estômago que ele vai resolver. Mas também não é pela lei tribal que ele vai resolver.

Aí é por excesso e por generosidade, aí é por sobra. Não é porque ele deve isso à coletividade – ele não deve nada à coletividade; mas, por ele ser afirmativo, ele é uma virtude que dá, não é uma virtude que toma.

  • Participante: porque sobra é legal.

É porque sobra, por excesso. O indivíduo livre e soberano é um indivíduo que excede, que dá, que é generoso.

  • Participante: quer dizer, ele come e dá. E sobra, não é? É mentira que é escassez, a escassez é uma mentira do capitalismo.

Sem dúvida, sempre sobra. Exatamente, a escassez é o medo que o capitalismo impõe para a gente. Nas tribos, o Pierre Clastres dá um exemplo de como o Estado não emerge numa tribo Guaiaqui, por exemplo, aqui no Brasil. Ele diz que o chefe, que tem a função de fazer a guerra ou de comandar a guerra, de ordenar e orientar a guerra, fora da guerra – isto é, nos tempos de paz – ele tem duas funções essenciais: falar muito, delirar bastante – e ninguém ouve o que ele fala, então a fala dele não tem eficácia de comando – e dar muito presente. Ou seja, ele tem que dar, ele não toma nada, ele não acumula nada, ele não estoca nada; ao contrário, ele tem que dar. São dois esconjuradores ou dois mecanismos que se usa para esconjurar o Estado.

Voltando, então: a relação de dívida, que gera a memória, é paga assim que a memória se estabelece, assim que você dispõe do futuro. Já existe o crédito ali que quita aquele débito. O que é o crédito? O crédito é a própria memória, o próprio futuro, a memória do futuro. Então a dívida é uma dívida material e finita, ela é paga, ela acaba ali; depois você gera outras – e você gera exatamente para se expandir. É o que Hume diria: são regras de passagem, não é uma lei que se estabelece de fora. São regras que você inventa na relação. Por exemplo: eu roubo uma mulher de uma outra linhagem, eu fico em dívida com aquela linhagem; eu vou ter que gerar alguma coisa porque desequilibrou aqui a minha linhagem em relação à outra. E eu gero um vínculo, eu gero uma relação, eu crio relações, eu invento relações, eu invento agenciamentos, eu invento modos da comunidade se expandir.

É por isso que o incesto, por exemplo, é proibido numa comunidade primitiva.

  • Participante: as palavras “dívida” e “crédito” se misturam com outro registro de dívida e de crédito que acostumamos, aqui no curso, a ver de uma forma extremamente pejorativa.
  • Participante: aí é a dívida infinita.
  • Participante: você está tratando isso de uma forma que, de repente, já não tem essa conotação e estou fazendo uma grande confusão.

Eu estou fazendo a genealogia.

  • Participante: agora com essa coisa da mulher de outra linhagem, é você manter uma teia biosustentável. E no biosustentável há uma teia de relação em que as coisas são necessariamente importantes que se troquem. Trocar é fundamental para sobreviver. Quer dizer, não é enquanto dívida-crédito, mas enquanto uma passagem.
  • Participante: não é bem troca.

É o contrário. Não é troca porque a troca pressupõe o termo já acabado ou, de alguma forma, com alguma demanda prévia – ou na sua memória, ou na sua projeção. No caso, você cria a relação, a relação não existia; você gera o vínculo, você gera a aliança. A aliança é anterior à troca; só é possível haver troca na medida em que há aliança, em que há a relação. Então essa aliança, essa relação é criada, é gerada, na faculdade de prometer, quando você é capaz de dispor de uma orientação no futuro e de uma valorização daquele elemento que você orienta. Você dispõe daquela direção, você inventa um canal. E isso é feito através de rituais de crueldade, de aplicação de dor; fazer sofrer é sempre o gozo de alguém – é o gozo de quem quer ver as relações se expandirem ou serem inventadas. Aí sim a troca é possível. A troca é secundária.

  • Participante: o neoliberal pode usar esse mesmo argumento; pode dizer “poupe no meu banco e o teu sofrimento, porque você não está gozando desse dinheiro agora, certamente é a minha felicidade, porque cada investimento que você faz no meu banco eu fico cada vez mais rico; mas isso me expande”. Esse mesmo argumento alimenta uma outra força.

Tudo bem, só que é absolutamente outro sentido; esse é um sentido absolutamente reativo e negativo da expansão. Porque aqui não há banqueiro, não há entidade transcendente fora do coletivo que está se beneficiando da minha invenção, da minha memória e da minha dor; esse que goza, esse que sente prazer na dor de alguém, é a própria atividade genérica, é a própria cultura que atravessa todo o corpo coletivo, porque não há noção de indivíduo ali. Mas evidente, há um vínculo que codifica e por isso há uma obediência ao coletivo, há uma submissão ao coletivo. E Nietzsche diz: o indivíduo livre e soberano não está ali, mas vai ser o produto da afirmação desse tipo de atividade. Aí sim você gera o produto – o indivíduo livre e soberano. O indivíduo livre e soberano já está livre de lei, já está livre de cultura, já está livre da obediência à coletividade. Aí a comunidade de homens livres não tem a ver com sociedade.

  • Participante: essa questão da dívida, podemos colocar como uma questão do inacabado? Porque quando você fala de dívida e crédito, tem uma dualidade, tem um jogo, uma gangorra. Se colocamos como um processo crescente ou decrescente…

Em desequilíbrio constante.

  • Participante: … e infinito; se tiramos dívida e crédito e colocamos infinitude, ganhamos o espaço de que sempre existe esse movimento. Então saímos dessa questão da dívida e do crédito.
  • Participante: é questão de linguagem.
  • Participante: não acho que é a linguagem, é um novo olhar sobre isso. Porque quando você vê “dívida” e “crédito”, você está vendo dois movimentos, duas faces de um movimento, uma dualidade no sentido da gangorra. E não existe.

O credor é a força ativa e a força ativa é plural, ela não vê dualidade; o devedor é a força reativa, ele vê vantagem. O devedor vê, o credor não vê. Então quando você é credor de você mesmo, você está no campo plural, acabou a dualidade.

  • Participante: não é isso. Você colocou uma coisa que é a questão da força ativa. Quando você trabalha a força ativa, também é o mesmo movimento; podem ser quantidades de energia diferentes, mas é o mesmo movimento. Há uma infinitude nisso que tem, inclusive, uma dobra. Quando você coloca aqui o credor e o débito, você coloca uma relação em que são duas instâncias, duas dimensões, e não puro fluxo que vai ganhando qualidades e diferenças. Aí entramos no mapa.

Eu acho que a aula passada faz falta, nesse sentido.

  • Participante: não acho. Eu acho que tem a questão da infinitude do movimento, por isso a questão do Bergson.

A vontade é plural. Você está supondo que a vontade seja única. Eu expliquei a pluralidade da vontade na aula passada. A vontade plural é o seguinte: a vontade é diferencial em cada relação e ela é afirmativa em relação à força ativa e é afirmativa em relação à força que obedece. Mas se a força que obedece não obedecer, se torna uma vontade negativa. A vontade negativa não é a mesma vontade que afirma. Em Schopenhauer a vontade é a mesma; é por isso que Schopenhauer acabou no niilismo igual a Kant, igual à tradição inteira: porque ele jogou a vontade não mais humana, mas para a natureza inteira. Mas a vontade mantinha a sua unidade; então aquele que quer e aquele que obtém é o mesmo, é a mesma coisa. A vontade e a representação são a mesma coisa. Então a vontade e a ilusão se tornam a mesma coisa, a vontade se nega a si mesma. Então Schopenhauer é pessimista e é niilista nesse sentido, ele acaba gerando uma ideia de vontade que se nega a si própria.

Em Nietzsche isso não acontece porque a vontade é sempre diferencial; você não confunde a vontade da força ativa com a vontade da força reativa de forma alguma – mesmo que a vontade da força reativa seja afirmar a obediência. Mesmo aí não é a mesma vontade.

  • Participante: o que isso tem a ver com crédito e dívida?

O crédito é sempre uma natureza que inventa, que cria, que gera; o débito são forças que estão em função dessa natureza que gera, que cria, que inventa. O débito é isso, o débito é submeter certas forças para que você possa levar uma potência mais longe e não dizer “ah, vamos fazer democracia entre as forças”. Aí não dá em nada, você simplesmente fica lá disputando a miséria de cada uma. Mas é o conjunto e o adestramento das forças reativas que liberam as forças ativas para a criação e para a ousadia. Então é uma condição ética da expansão da vida e da afirmação da vida. É uma disciplina, é um adestramento das forças reativas. Então, no caso da atividade genérica da cultura, há um devir ativo das forças, há um devir afirmativo da vida.

O que faz a má consciência, o que é a dívida, o que é a ação da má consciência? A força reativa é adestrada para obedecer; no momento em que o ressentimento triunfa, as forças reativas não só vão deixar de ser agidas, não só vão se subtrair à ação das forças ativas, mas também – ao inverter a relação, ao tomar o poder, ao investir a memória das marcas – vão gerar a ilusão de atividade a outras forças reativas; vão dar a outras forças reativas a função do comando. E que outras forças reativas vão ser essas? Vão ser forças reativas que só suportam forças reativas e que vão ajudar a investir ou montar o sistema que separa a força ativa do que ela pode. São essas forças ativas que vão assumir os postos de comando ou vão assumir o poder – o poder que é gerado no processo.

Então seja o Estado, seja a Igreja, seja uma raça, seja um povo, seja uma etnia – não importa, as forças reativas que estavam adestradas para obedecer às forças ativas agora vão obedecer a outras forças reativas. E essas outras forças reativas vão ter a aparência de agir, aparentemente elas vão agir; mas elas sempre emprestam a ação, a atividade, das próprias forças ativas. Ou seja, elas submetem os devires ativos, que não param de passar, à sua própria reatividade. É isso que ocorre.

Nesse processo, a dívida se torna infinita. Por que? Porque agora eu não devo mais para a força ativa, eu não devo mais para uma função de futuro ou para uma potencialização de relação, uma invenção de realidade na própria relação que eu crio através da memória; o que eu faço agora é dever a minha conservação, a minha manutenção, a minha virtude a essas outras forças reativas às quais eu obedeço e que têm a função de comandar e de dividir a organização do rebanho. Organizar o rebanho é a função dessas outras forças reativas: são os pastores, são os Estados, são as igrejas, são as etnias ligadas às leis.

Quando eu faço isso, a força reativa se torna uma devedora infinita, porque ela não tem realidade nela mesma, ela não encontra realidade nela mesma, ela não efetua a sua própria diferença, ela não tem como efetuar a sua própria diferença. Ela se mantém infinitamente dolorida e esse é o signo da infinitude da dívida, o infinito da dor, o infinito do sofrimento. Porque se eu estou separado do que eu posso e se eu interiorizei a força ativa, eu estou multiplicando a dor. Na medida mesma em que as minhas forças reativas agora investem essas outras forças reativas ou obedecem a essas outras forças reativas, a minha própria dor se torna signo de expiação: eu expio a minha dor e a minha culpa, ou a minha falta de realidade, na medida em que eu sigo essa orientação transcendente a mim mesmo, que está fora de mim mesmo. Então a dívida é dívida para um Deus, é dívida de existência; e a dívida de existência é uma dívida infinita.

Quando a dívida se torna infinita, ela também se torna impagável; e se ela se torna impagável , é preciso que um credor absolva a dívida. É o que Kafka chama de absolvição aparente, no Processo. Absolva a dívida e, mais: pague a própria dívida do devedor. Deus na cruz, Deus que se prega na cruz – é preciso a loucura de um Deus que se pregue na cruz, para que a dívida dos devedores seja paga. Isso é São Paulo, já, isso é a ótica de São Paulo. Mas a promessa de futuro e de salvação só se dá na medida em que você segue pagando os juros da dívida, você segue expiando a sua culpa com a multiplicação da dor. E qual é a multiplicação da dor? Gera um produto utilitário de que um terceiro se apropria. Esse terceiro é sempre uma Igreja, um Estado, ou Deus, ou a lei, ou o banqueiro, ou o pai, a família, não sei quem. Ou o outro que me acusa. Sempre tem alguém fora me acusando, que quer tirar uma vantagem da acusação, que quer me por nos trilhos ou me eliminar. E me por nos trilhos significa que eu produza para que ele tire uma vantagem disso.

É por isso que a moeda, no sistema capitalista, realiza este papel esquizofrênico: a moeda que vende e a moeda que compra não são a mesma; a moeda que compra é a devedora infinita e a moeda que vende é a credora infinita; e nunca fecha o ciclo e eu tenho sempre o produto separado do produtor. O produtor sempre tem uma moeda que compra; a moeda que compra nunca compra o suficiente; o que é capitalista, ou esta entidade fora, vende muito – e a tua moeda nunca compra o que eu tenho para vender, nunca pode comprar. Essa é a esquizofrenia no interior do próprio capitalismo. E isso que efetua, que realiza materialmente a dívida infinita na atualidade; a dívida infinita é essa separação do que você pode na medida em que o que você gera, o que você cria de realidade, é abstraído por uma demanda, por um valor de utilidade ou de troca – não importa -, por onde a mais-valia se efetua e se acumula capital. É o sistema capitalista.

A má consciência é exatamente o momento em que, de tanto imputarem a culpa em mim, eu acabo assumindo a culpa: “de fato a culpa é minha; porque eu sofro, eu sinto que sou culpado. E quanto mais eu sofrer, mais eu me purifico, mais eu me divinizo, mais eu me torno um homem de

Bem”. Isso é a má consciência. A má consciência é: “a culpa é minha e eu quero expiar a minha culpa, eu quero pagar a minha culpa”. “O Édipo é meu”.

  • Participante: então você está dizendo que o sistema capitalista veio a partir dessa dívida e crédito que você estava falando interiormente? Por um desdobramento?
  • Participante: um descolamento.

Sim, mas isso é um processo que, como outros processos, encontraram e geraram acidentalmente ou por acaso o capitalismo; não estava escrito na história.

  • Participante: não é causa. Mas houve um desdobramento dessa dívida e desse crédito.

Quem é o credor? É aquele que acusa, é o homem do ressentimento. Agora, esse que acusa forma um sistema de poder e o crédito se aloja no sistema de poder. E quem é acusado, que é o devedor, vai ter que gerar o produto que é o pagamento da dívida. Só que ele não paga mais porque a instância que transcendeu, se separou definitivamente da vida; virou uma dívida de existência – você deve toda a sua existência para esse plano. Isso que é o plano transcendente de organização.

Só que no nosso caso a coisa ficou mais sutil: isso tudo se interiorizou em nós. A má consciência é exatamente a interiorização.

Em Kant: “eu sou livre na medida em que me torno legislador; e eu sou legislador na medida em que eu quero que o universo inteiro assuma a forma do meu dever, o que deve ser feito”. Ele solda o desejo à lei. Então você, em Kant, diz “sim, eu sou uma natureza autônoma, eu sou uma natureza livre, eu tenho o crédito de mim mesmo”. Mas quem é esse eu que tem o crédito de si mesmo?

Esse eu já é o Estado falando em mim, já é o outro que está em mim. Então eu tenho a ilusão da imanência e da liberdade. São as sutilezas do sistema capitalista. E mais eu tenho a sensação de que eu sou o produtor, de que eu faço. Não há nada mais claro do que isso quando o capitalista diz “eu produzi isso, eu produzi aquilo” quando ele é dono da fábrica, quando ele é dono do capital, quando ele não faz um movimento ativo para gerar aquilo. Ele apenas tem o capital, tem uma concentração de energia, e ele investe e distribui aquela concentração; ele é apenas um distribuidor e não um produtor.

  • Participante: no exemplo das tribos, a dívida e o crédito se resolvem no próprio ritual, nos próprios rituais de passagem. Lá, quando você estava falando isso, me provocou um estranhamento; mas agora, quando você fecha com essa história de dívida e crédito e esse deslocamento, então você entende uma gênese de um processo no qual dívida e crédito, num primeiro instante, se resolvem na própria passagem.

Perfeito. E agora você tem elementos para fazer a distinção clara entre uma justiça ativa e uma justiça vingativa. O que é a justiça ativa? Justiça ativa é esse adestramento das forças reativas, essa relação de dívida e crédito que gera uma memória e um fluxo de futuro. A justiça ressentida ou vingativa é aquela que acusa o que é ativo, destitui o que é ativo e que quer extrair uma vantagem, uma utilidade, uma bondade da ação do outro para que seja feita o atendimento das suas demandas.

Atender às suas demandas é fazer justiça – essa é a justiça vingativa e ressentida. É todo o contrário da justiça ativa.

  • Participante: com essa história do rito, é possível essa dissolução dessa dualidade?

Totalmente. O que diz Nietzsche? Ao afirmar a relação – a relação dívida e crédito -, não há uma entidade fora do movimento que se destaque e se torne credora; é na imanência dos processos que você vai diferenciando de modo tal que vai desembocar no indivíduo livre e soberano. O indivíduo livre e soberano não tem nenhuma dualidade, ele é credor de si próprio.

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Aula 01 – Introdução ao curso

A sabedoria é mais ligada a sacerdotes, religiões, Estados, leis, estruturas fixas que devem ser conhecidas por meio de alguma ascese ou de algum exercício que leve à ascensão até essas formas, do que propriamente a um exercício de pensamento. Então a nossa questão sempre estará ligada a um retorno para a imanência do pensamento, quando se pensa em ato.

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