Por Luiz Fuganti
Hoje vamos falar da experiência do corpo. Já focamos bem a ideia de experiência porque a experiência é a porta de entrada de tudo o que nos atravessa. É a dimensão que nos coloca numa posição de imanência e nos tira – se a gente compreende a qualidade dessa experiência fora do sentido ordinário – de uma demanda de orientação transcendente, de uma demanda de um estatuto universal dos valores e de uma interioridade que nos separaria do mundo ou das coisas. A questão da experiência é essencial porque ao mesmo tempo em que é porta de entrada do que nos atravessa, é pela qualidade da experiência que aquilo que nos atravessa também se torna um produto da própria natureza em nós ou um produto de alguma separação de nós mesmos, enquanto produto de uma instância negativa que nos bloquearia. A ideia de experimentação é aquela que nos coloca diretamente nesse plano de imanência porque é o contato imediato com aquilo que nos acontece que nos modifica. Põe-nos em relação com a dimensão do próprio acontecimento. Sem acontecimento não haveria modificação. A experiência nos possibilita apreender aquilo que se passa, aquilo que acontece com a nossa vida em relação, na medida em que nós estamos implicados nisso, que algo nos modifica por causa de nós mesmos, e que isso aparece também no modo de nós mesmos nos relacionarmos. O modo de relacionar vai acabar produzindo realidade em nós. Essa maneira que desconstruimos, do ponto de vista crítico e liberando também o outro aspecto, ponto de vista criativo, faremos também com o corpo, a experiência do corpo. Vimos o que nos separava dessa experiência no sentido extraordinário que a gente tinha tratado aqui, do ponto de vista do pensamento, era um certo uso da linguagem, dos signos, que iremos retomar mais adiante. Na medida em que essa linguagem, acoplada a consciência operava uma mediação representativa, o pensamento ficava separado do próprio tempo imediato enquanto acontecimento que o constituía. Essa experiência do pensamento só se torna novamente uma experiência produtora de realidade na medida em que operamos essa crítica e reconquistamos novamente a dimensão do imediato de modo a fazer do pensamento uma potencia de criação. Desconstruimos o pensamento enquanto contemplação, reflexão e comunicação. Enquanto encadeamento de signos e de imagens. A ideia mesma de experiência, no seu sentido extraordinário implica uma conquista de autonomia, uma dimensão própria daquilo que experimentamos. Se nós dissemos que há uma experiência própria do pensamento e agora estamos afirmando que há uma experiência própria do corpo, é preciso encontrar essa dimensão que dá autonomia ao corpo, assim como encontramos a dimensão que dá autonomia ao pensamento. Ligamos o pensamento a sua potencia infinita de variar assim como agora vamos ligar o corpo a sua infinita potencia de variar também. O que é variar no pensamento e o que é variar no corpo? Variar no pensamento é acontecer a partir de uma realidade incorporal, acontecer enquanto tempo que se basta. Variar no corpo também é acontecer, mas no movimento que se basta. O próprio movimento precisa encontrar sua dimensão autônoma. Não haveria experiência do corpo nesse sentido extraordinário se o próprio corpo não encontrasse sua dimensão autônoma, que é o próprio infinito do movimento, ou seja, o ser do movimento é uma potencia infinita de variação enquanto movimento. Uma potencia infinita do movimento se modificar a si mesmo e produzir heterogeneidade dele mesmo. Ele próprio se torna diferente dele mesmo. Essa é a dimensão essencial do corpo que precisamos encontrar. Isso vai ficar mais claro na medida em que fizermos a operação crítica, ou seja, desconstruir aquilo que nos separa do infinito do movimento, para em seguida entender o que é esse infinito do movimento. Não é um infinito numérico, quantitativo extenso, nem estatístico, nem de grandeza, é um infinito intensivo. Para entender esse infinito intensivo é preciso encontrar o imediato do movimento em nós, o movimento que nos sustenta e que se modifica em nós. Mas para encontrar esse imediato é preciso se desfazer daquilo que nos separa desse imediato do movimento em nós, que é um certo uso que temos da sensibilidade. Eu dizia que a experiência é a porta de entrada de tudo que nos atravessa, mas essa porta no corpo é a sensibilidade. A experiência sensível nos coloca numa condição de separação ou de ligação com o imediato do movimento. Qual a qualidade da sensibilidade? Qual a qualidade do nosso corpo estético? Qual a qualidade do encontro movente? Do encontro que modifica o próprio movimento. Do encontro do movimento com o movimento. Isso que é necessário criticar, na medida em que há uma certa qualidade ou desqualificação do movimento que nos separa, que faz com que o corpo fique separado do que pode. Ou inventar uma maneira que retoma novamente o movimento na sua imediaticidade. O movimento tem uma realidade própria, independente do pensamento. Essa realidade própria do movimento, do ponto de vista do tempo, é o presente. Só o presente existe. O passado e o futuro não têm existência, mas eles não deixam de ter realidade. A realidade do corpo é uma presença no tempo, é uma existência, que é uma extensão de tudo que apreendemos fisicamente. Essa extensão física se exprime até onde vai a paixão e a ação de nosso corpo. Toda a dimensão da ação e da paixão contemplaria aquilo que a gente chama de existência do movimento ou presença do movimento ou aquilo que é próprio do corpo. Quando falamos de corpo a gente fala de tudo aquilo que modifica o corpo e que ele próprio modifica e onde ele mesmo é modificado. Toda essa extensão da modificação que ele imprime e da modificação que ele sofre é movimento, é presente, é corpo. Essa dimensão física que iremos tratar agora. Esse plano de realidade. É todo o conjunto de ações e paixões. No plano do pensamento não falamos em ação e paixão, mas em ato. O ato é diferente da ação. A ação tem espessura, assim como a própria paixão. A espessura de uma modificação imprimida, a espessura de uma modificação sofrida. É toda a extensão dessa modificação. É toda a duração do movimento na sua variação modificadora ou modificada. É esse o campo do corpo, o domínio da experiência do corpo. Nesse sentido, tudo aquilo que nos afeta ou que nós afetamos atravessa uma maneira de afetar e ser afetado. É sempre através de uma maneira que nós afetamos e que somos afetados. É nessa maneira que tudo se passa, o problema ético, da separação do nosso corpo do que ele pode ou a própria conquista de um corpo intensivo, afetivo, de um corpo que tem enquanto sujeito e o objeto, o próprio movimento. Sem nenhuma intermediação da imagem. Existe um regime da ação e da paixão, um regime da sensibilidade, um regime das imagens que podem operar esse corte ou essa separação do corpo do que ele pode. São esses regimes, que Foucault chama de regime de luz e Deleuze-Guatari de forma de conteúdo, que vamos precisar operar a desconstrução. Em Mil Patos, no texto Rosticidade, Deleuze diz que os três estratos, ou camadas que separam o homem do que ele pode, que capturam as suas forças são: dois regimes de signos – a significação e a subjetivação – no plano do pensamento e um regime de luz, que ele chama de forma e conteúdo que é o organismo. O organismo é o que separa o corpo do que ele pode. Nosso objeto critico é o organismo, que captura os órgãos, limita suas funções e faz com que a gente perca o corpo intensivo, o nosso corpo afetivo ativo e ganhe um corpo afetivo passivo ou passional. Faz com que a gente apreenda o corpo numa dimensão reduzida daquilo que acontece ao corpo, dimensão essa fetoomo o sentimento existercepçee tudo aquiloentensivoodifica.que é aquilo que se passa entre a percepção e a ação num regime sensório motor. Mas sob a percepção existe um percepto, assim como sob o sentimento existe um afeto. Precisamos apreender o percepto sob a percepção e o afeto sob o sentimento e nessa medida começamos a liberar o nosso corpo intensivo e a condição ou horizonte movente que faz com que o motor do próprio movimento seja o acontecimento que o modifica e não mais um organismo que determina de fora esse corpo. A questão é, de que modo as formações sociais são capazes de construir telas ou capas que tornam o nosso modo de sentir, de perceber, de se mover, tolerável para uma sociedade? As sociedades produzem regimes gestuais, regimes de ações e paixões, regimes de segmentação de movimento sem os quais elas se desmanchariam ou se sentiriam ameaçadas etc. e tal. No plano dos costumes, moral, dietético, amoroso, econômico, ou seja, em todas as dimensões do homem existe uma certa demanda de organização dos movimentos que atravessam o corpo. Esse é o nosso ponto critico. As sociedade modernas agem no sentido de construir uma cadeia de imagens que forma um regime sensível que faz com que aquilo que atravessa o corpo, a questão essencial do movimento, seja tornada refém de uma organização extrínseca ao próprio corpo. Que faz com o corpo perca a sua autonomia, que ele se separe da dimensão virtual dele mesmo e ao se reduzir a uma dimensão atual que ela seja fragmentada e só unificada segundo um organismo exterior a ele mesmo. É preciso reencontrar esse modo imanente de unificação que seria um plano intensivo e contínuo do próprio corpo e a zona que é a fonte autônoma do movimento que não é o próprio organismo. O organismo seria um tipo de céu do corpo, de espelho do corpo, uma espécie de plano de rebatimento sem o qual o corpo não seria justificado, nem legitimado, nem verificado, nem útil. É preciso também produzir um corpo útil, verdadeiro, que não engana, fiel, justo, moral, que tem respeito à finalidade sensível. É preciso inscrever a finalidade no corpo, do ponto de vista dos regimes sociais que necessitam extrair dele alguma produção útil para a demanda exterior. As sociedades criam máquinas de produção de corpos, que operam num campo onde a sensibilidade mesmo não acessa. Foulcaut dizia, de alguma maneira, que a forma do corpo é uma espécie de forma cega que faz ver e a condição do discurso é uma espécie de forma muda que faz falar. É preciso atingir essa forma cega, essa zona cega e não imaginar que com a nossa sensibilidade a gente vai captar essa condição. A gente não capta essa condição. É preciso apreender algo que se passa antes da condição que faz com que o corpo experimente de modo limitado numa época. É preciso ultrapassar as condições da experiência estabelecidas por uma época. Apreender aquilo que condiciona o corpo numa época e criar uma linha de variação, uma outra maneira do corpo experimentar. O domínio do corpo é o domínio da ação e da paixão, até onde se estende a ação e a paixão é o que exprime o movimento ou a dimensão física de nós mesmos. Essa experiência é única em relação a si mesmo e que dirá em relação às outras. O pensamento tem uma autonomia, uma dimensão própria e o movimento tem uma autonomia, uma outra dimensão própria. A diferenciação opera nos dois regimes, mas sempre de modo diferenciado na medida em que um encontra com o outro. Há uma zona comum de encontro que é essa dimensão que a gente chama de ética. Mas o movimento, na sua diferenciação, implica um engendramento de si mesmo que faz com que a dimensão virtual se exprima na dimensão atual. Mas a dimensão virtual do movimento não é a mesma que a dimensão virtual do pensamento. A dimensão virtual do movimento é uma espécie de vazio. O vazio é próprio virtual do movimento. O vazio não é um nada, é uma realidade. Estou fazendo uma panorâmica de modo ainda bem genérico pra começar a se aproximar dos principais problemas que atravessam o corpo. Há um regime de imagens, um regime de sensibilidade que separa o corpo do que ele pode que opera uma espécie de captura, de roubo daquela fonte virtual do próprio movimento que é o vazio e não o tempo, que seria o do pensamento. O vazio é roubado como uma dimensão real e de alguma maneira nadificado. O vazio e o nada acabam se identificando do ponto de vista de um regime de luz, de um regime de corpo que captura o corpo. É como se nadifica o acontecimento da vida como um acidente. O acontecimento não é um acidente, ele é produtor de essência. Mas o pensamento niilista desqualifica o acontecimento como um acidente, uma contingência de um modelo universal que legitimaria a ideia e a ação. No caso do corpo é a mesma coisa. Há uma desqualificação da superfície virtual do corpo, que é o vazio. Rouba-se esse vazio e no seu lugar se põe imagens. Assim como no pensamento rouba-se o acontecimento e no seu lugar põe um ideal que é materializado no signo. O regime de signos que captura o pensamento rouba os entre tempos, cria uma homogeneidade no tempo e põe signos no lugar dos entre tempos. Entope o pensamento de signos. O signo é o que separa o pensamento do que ele pode. Claro, nem todo signo, um uso do signo. O signo em si mesmo é uma potencia, não é bom nem mal. Pode ir para cá, ou para lá, de muitas outras maneiras. O regime de signos opera uma espécie de roubo ou desqualificação dos entre tempos e dos acontecimentos e inocula um signo no lugar. A mesma coisa no corpo, há um roubo do vazio, do intensivo, do que atravessa o corpo e no lugar se coloca imagens. A imagem, assim como o signo, não é boa nem má, é também uma potencia. Mas qual é o uso da imagem? Como o corpo experimenta a imagem? Como se constrói uma sensibilidade orgânica que faz com que a própria imagem seja um elemento chapado, opaco. A imagem de alguma maneira mortifica, desqualifica o corpo, esse certo uso da imagem, desqualifica o corpo intensivo e cria no lugar uma espécie de plano de resgate. O corpo seria resgatado na medida em que ele se pendurasse num organismo, atendesse a demanda de um organismo que é um horizonte exterior e transcendente a ele mesmo, um horizonte extrínseco a ele mesmo. Ele seria utilizado, legitimado a partir do momento em que, separado do que pode porque perdeu o virtual dele mesmo, ele busca o organismo que o resgataria desse buraco. O próprio corpo encontra, na medida em que é separado do que pode, vantagens no investimento de um organismo. O que seria este organismo? É uma cadeia de ações e paixões, de imagens, uma rede de sensibilidade que provoca uma certa atitude corpórea que demanda, estabelece um problema de fora para o próprio corpo. O problema essencial do corpo é o movimento. O corpo, já dizia Bérgson no Matéria e Memória, é um centro de ação e de paixão que , na medida em que percebe e se relaciona com outros corpos, está sempre numa espécie de atitude demandada ou instigada a produzir uma resposta. Ou seja, o corpo vive entre a percepção e a ação, entre o sensóreo e o motor. O que fazem esses regimes de luz, de imagens, de ação e de paixão? Essas cadeias, ou encadeamento? Segmentam o movimento. São uma máquina de segmentarizar o movimento. Cortam o movimento no sentido da sua imanência e penduram o movimento numa certa transcendência, faz um falso corte no movimento para que ele seja distribuído segundo uma demanda exterior a ele mesmo e religa o movimento segundo a uma reutilização necessária para essa máquina social. Esse falso corte e falsa ligação operam realmente. Essa máquina de desqualificar e requalificar o corpo, de desintensificar e organizar o corpo precisa se apoderar de toda região sensorea motora. A região sensorea é ligada ao campo perceptivo, mas o campo perceptivo já é uma espécie de ordem de movimento, de determinação do movimento. Bérgson diz, a percepção é uma ação possível. Quando eu percebo um objeto, eu vejo esse banco, ele me possibilita certas coisas. Eu posso sentar nele, jogá-lo pela janela, posso fazer várias coisas sobre ele. Eu tenho uma influencia sobre ele, assim como ele também tem uma influencia sobre mim. Essa distancia entre o sensóreo e a resposta motora cria uma zona de indeterminação. Mas é na distancia do objeto percebido em relação ao meu centro de ação que existiria a colocação de um problema para o meu próprio centro de ação. É como esse banco solicitasse ao meu corpo um tipo de resposta. A máquina, isso que Deleuse-Guatari chamam de agenciamento maquínico do desejo, que é uma máquina que opera essa segmentação do movimento vai criar zonas iluminadas da matéria e sombrear outras zonas. A zona iluminada é aquela onde o meu corpo percebe algo. Percepção é uma zona de luz e se a percepção demanda movimento no meu corpo, na medida em que eu opero aquilo que pode ser percebido e oculto o que não deve ser percebido eu já crio um limite para o corpo. O corpo só é acionado por uma certa zona iluminada determinada, historicamente, politicamente, economicamente, ou seja, por um conjunto de valores de época, por um regime de sensibilidades dessa época. Um exemplo simples para isso, o Foucault na História da Loucura e no Nascimento da Clinica diz que o corpo do louco, enquanto doente mental, só é separado, enquanto um corpo específico, enquanto uma individualidade própria, a partir do século 18. Antes disso isso não acontece, os loucos estavam junto com os leprosos, delinqüentes, mendigos e outros mais. Existia toda uma zona indiscernível porque as sociedades daquela época não tinham o problema de especificar um tipo de corpo ou aquele tipo de corpo. Numa massa de mendigos, de leprosos não se distinguia o corpo de um louco. Já no século 18, 19, isso é reportado. Há uma certa eliminação da matéria, uma iluminação objetiva que faz com que aquilo seja recortado de um modo diferente. Essa iluminação também já é uma ordem de movimento. Meu corpo vai reagir a isso. Isso vai passar a existir de modo próprio, singular, em relação ao meu corpo. Imaginem isso em qualquer detalhe, numa formação social que precisa controlar os corpos. Uma fábrica, uma escola, o ambiente famíliar, a rua, o urbanismo, de uma cidade, o ruralismo, o sistema de transportes, um elevador, o que vocês quiserem. Todo o campo físico do corpo sendo segmentado, sendo formado. Toda essa matéria sendo formada enquanto substancias de conteúdo e se relacionando de um jeito singular que seria uma forma de conteúdo que elas receberiam ou regime de imagens ou de sensibilidades que faria essa cadeia, uma espécie de estrato unificado. É aí que a máquina social do poder, do ponto de vista do corpo, produz a segmentação do movimento. Nessa região entre o sensóreo e o motor. O que faz o motor diante dessa provocação sensível, perceptível? Ele precisa responder para ter a sua existência, recompensa, aceitação. Há um regime de aceitação e de rejeição do ponto de vista só do corpo assim como há um regime de aceitação e rejeição do ponto de vista do pensamento. É necessário apreender a dimensão própria do corpo no seu regime de aceitação e rejeição justamente para quebrar esse espelho do corpo. Esse espelho do corpo opera nessa região entre o sensóreo e o motor. Como se quebra? Injetando vazios, buracos, entre o sensóreo e o motor. Rasgar essa continuidade extensa entre o sensóreo e o motor. Não para que a gente se separe da continuidade, mas para que haja, de fato, uma continuidade intensiva e não extensiva. Para reconquistar a continuidade intensiva do movimento é preciso operar a critica, apreender o vazio enquanto realidade virtual do corpo. Na medida em que o vazio se apresenta, a própria riqueza da variação do movimento, ou toda a virtualidade da variação do movimento que pode acontecer ao corpo começa a se apresentar. Para reconquistar a presença do corpo é necessário desconstruir essa cadeia de imagens ou de sensíveis e inocular vazios para que os poros do corpo, as passagens sejam desobstruídas, desentupidas. Elas estão entupidas de imagens fantasmáticas e mumificadas. As imagens mumificadas são aquilo que já pegou o corpo e as fantasmáticas são aquilo que mantem o corpo numa certa zona de medo e esperança, ou seja, uma zona de crença. É necessário do fazer fantasma, uma fabulação e da múmia, uma vida ressuscitada. Redisponibilizar as forças que estão engessadas no corpo. Porque as forças estão aí, não existe corpo que não tenha corpo próprio e, no entanto é raro entre o homem apreender um corpo que funciona a partir do seu ser próprio do movimento. Ele sempre funciona legitimado por um organismo exterior. É por isso que iniciei falando de experiência, pois nada existe fora dos planos dos encontros. Tudo é encontro. Tanto o poder sobre o corpo ou exercido pelo corpo quanto a potencia acontecem numa certa zona, num certo topos. É sobre o corpo que o poder se exerce, assim como é sobre o corpo que a potencia também se exerce. A potencia se exerce sobre o corpo na medida em que o corpo está ligado a sua superfície virtual. O poder se exerce sobre o corpo na medida em que a superfície virtual do corpo é desqualificada e introjetado no lugar uma cadeia de imagens. Essa cadeia de imagens que faria do corpo um corpo que sofreria poder, que exerceria poder ou até um corpo poderoso. A nossa questão não é um corpo poderoso ou um corpo submetido, mas um corpo potente ou glorioso, que não seria apenas o de Cristo, aliás o de Cristo não seria esse corpo glorioso, mas um corpo intensivo, pleno de afetos e movimentos ativos. Fazer com que o movimento que nos sustente seja o sujeito do próprio corpo e não uma consciência. Esse movimento enquanto sujeito engendraria, modificaria e criaria o próprio corpo. Na medida em que reconquistamos a superfície virtual do corpo é que somos capazes de fabricar o próprio corpo, de fabricar sensações para o corpo, que vão operar uma produção de afetos e de perceptos. Esses blocos de sensação são operados nessa zona virtual do próprio corpo. O poder opera um corte, extrai através da própria sensibilidade um certo limite sensível. Por ex, até onde é bom, é verdadeiro, é útil e é justo olhar? Ou se sentir olhado? Ouvir ou se sentir ouvido? Existem limiares de sensibilidade e extrações desse uso da própria sensibilidade atravessada pelo movimento. Você segmenta o movimento na medida em que legitima a sensibilidade a partir de fora, ou deslegitima. Você separa a sensibilidade da sua autonomia de variação. A sensibilidade na verdade já é efeito do movimento. Então você separa na verdade é o movimento da sua autonomia. É como se o movimento não tivesse legitimidade, justificação, verdade próprias e você pendura o movimento, na medida em que uma condição negativa separa esse movimento do uso da sensibilidade, essa mesma instância religa os segmentos separados segundo agora esse organismo que demanda o corpo de fora, que extrai energia, que faz com que o corpo se torne uma peça produtiva de uma máquina que resolve problemas que não são os dele. São problemas de um outro. A percepção vira posse do próprio poder, a zona perceptiva é apoderada. É como a TV ou um jornal, fala-se ao que interessa ao poder estabelecido e nessa medida faz-se o povo pensar o que deve ser pensado, assim como se faz ver o que deve ser visto. Se apoderar e criar um regime perceptivo e ao mesmo tempo religar aquilo que se separou, unifica e totaliza o corpo nesse grande corpo reativo social. É esse duplo movimento do poder assim como outro duplo movimento da potencia que temos que entender. Qual o duplo movimento da potencia? O critico, para encontrar e o imediato do movimento e o criativo para, a partir do momento que se encontra a fonte, ser capaz de criar a própria variação, a partir do próprio movimento, sem referencia nenhuma a outra instancia. O duplo movimento do poder é a desqualificação e a requalificação. A destituição da zona virtual e intensiva do corpo para torná-lo limitado e reduzido a uma extensidade, a uma quantificação e ao mesmo tempo uma religação desse corpo extensivo e fragmentado numa unificação dele a um espelho chamado organismo sem o qual ele não ficaria de pé. Vamos supor que existem duas maneiras de ficar de pé: uma pela muleta do organismo ou pendurando o corpo no organismo e outra pela imanência do próprio movimento que se auto sustenta nessa relação com o virtual dele mesmo. É o corpo cujos movimentos engendra uns aos outros a partir das próprias bordas, dos seus próprios limiares, tem uma continuidade própria, ligada de dentro e não extrinsecamente. É como a montagem de um filme, ele pode ser montado por cenas, por narrativas, por situações dos personagens, mas pode ser montado pelo engendramento daquilo que se passa na cena. A cena mesma engendra a sua continuidade, uma maneira imanente de se fazer a montagem. Assim no corpo, precisamos encontrar o movimento que engendra a nós mesmos, que faz com que cresçamos pelas próprias bordas, que esse movimento seja ao mesmo tempo catatônico e precipitado e que se precipite no extremo dele mesmo e ao se precipitar ele lança uma nova ponte, cria uma nova passagem para ele mesmo. Catatônico, pois é uma espécie de suspensão e acumulação de movimento. O movimento tem um modo de se acumular. Existe uma memória do movimento que Bérgson chama de hábito. Mas há uma outra dimensão aí, o movimento que se acumula a ele mesmo, que se conserva e se continua, assim como o pensamento ou o tempo que se conserva, que se registra, que tem a memória dele mesmo e que se diferencia de si. Assim como há uma duração do pensamento, há uma duração do movimento e para isso é necessário que algo do movimento permaneça, senão ele não duraria. Essa é a espessura. Ao mesmo tempo que algo dele permanece, na própria duração dele, ele se modifica. Pois o que é durar senão modificar, experimentar, acontecer. Ao mesmo tempo algo se conserva e algo se modifica e esse algo pode sempre estar no limite extremo de si mesmo, que é a própria conquista da imanência do movimento. Ou seja, não ser determinado de fora, como diria Spinoza. Isso não significa desconectar do fora. Ao contrário, aí que se torna mais capaz ainda de se abrir ao fora. Dizer que a paixão separa a vida do que ela pode não significa ir contra paixão. Se você apreende essa natureza da paixão como separação, mas ao mesmo tempo como oportunidade de experimentação, a paixão então se torna desejada, querida. Desde que ela seja redobrada ou transmutada em uma ação. Quando o corpo apreende esse extremo dele mesmo e engendra de modo imanente a própria variação do seu movimento ele não se isola do mundo. Ao contrario, cria condição para se abrir ainda mais a todas as paixões, a toda capacidade de ser afetado que ele possa ter. Dessa forma o corpo se torna muito mais capaz de mistura. A purificação do movimento é pela potencia de se misturar. É ao contrario do ascetismo moral. O duplo aspecto, do ponto de vista da potencia, ou seja, a desconstrução critica daquilo que separa o corpo do que ele pode e a conquista do engendramento do movimento pelo movimento no corpo faz com que o corpo intensivo se apresente sob o corpo extenso. O corpo afetivo se apresente sob o corpo sentimental. O corpo sem órgãos se apresente sob o corpo orgânico. Essa é a dimensão do corpo que precisamos conquistar. Reconquistando essa dimensão no seu duplo aspecto apreendemos também que o corpo não precisa ser legitimado, verificado, autorizado por uma outra instancia como a consciência, por exemplo. Ou se existe uma consciência ela é própria do movimento e não uma consciência moral, ou racional, ou religiosa, ou metafísica, ou da lei, ou do estado para dizer o que o corpo deve fazer. O corpo conquista o seu próprio duplo, ele se religa ao virtual, ultrapassa aquela dimensão reduzida que se encontrava do sensóreo motor que o atrelava a um existente como estado de corpo e não como potencia. Uma redução não só que desliga do virtual, mas também uma redução do corpo existencial. Precisamos então retomar o corpo existencial na sua abertura máxima, que só é possível se reconquistamos a dimensão do virtual que já está nele. Precisamos apreender isso novamente, se religar a isso que já está, tomar parte disso que já somos, criar um corpo ativo. Qual é então o primeiro problema? Se ele é critico, como diz Nietzsche, se é preciso o não do leão – esse niilismo ativo que diz não ao que desqualifica a vida para reencontrar a fonte afirmativa – em relação ao corpo, um assassinato ao que organiza o corpo de fora, com a máxima inocência, implica então uma prática do virtual ou abstrata do movimento. É preciso criar uma pratica, pois a gente só apreende e se prepara, cria um corpo capaz de se relacionar com o movimento enquanto movimento, na medida em que vai se exercitando a apreensão do movimento antes da figura, antes do estado do corpo, da imagem e da sensibilidade. O corpo não se reduz a sensibilidade, nem a imagem, nem aos seus estados de humor. Existe, sob a imagem, uma força enquanto movimento. Existe, sob o sentimento, um afeto enquanto pura variação da potencia. Existe, sob o organismo, o órgão e a função do órgão que foi capturado e formatado por esse organismo, mas o próprio órgão e função do órgão foi a invenção de um corpo sem órgãos. O órgão em si não é ruim, bom ou mal, ele é uma válvula criada pelo corpo, uma zona de seleção criada pelo corpo. É preciso libertar os órgãos do organismo. O próprio Artaud, num certo sentido, chegou a confundir órgãos e organismo, e quando ele diz que é preciso reconquistar o corpo sem órgãos, às vezes aparenta uma contradição com os órgãos, acabar com os órgãos e ficar com o corpo sem órgãos. Não é disso que se trata, não é isso que Artaud quer. É que os órgãos estão pendurados num organismo e se decolaram do corpo sem órgãos que os produziu enquanto válvulas ou seleções afirmativas e inclusivas do próprio movimento. Isso foi perdido e essa retomada é fundamental. Para operar essa retomada e preciso começar a desligar a imagem de outra imagem, a sensibilidade da imagem e religar a imagem a uma força ou ao movimento que atravessa ou que gera essa imagem. Ligar a sensibilidade a uma luz que vem da própria coisa, a uma variação que vem disso que percebe e não mais a um sujeito que percebe o objeto, ou a um objeto que é percebido por um sujeito. Sair dessa dicotomia sujeito objeto. Não é o olho que vê o objeto, não é o ouvido que ouve o som. Existe uma sonoridade que modifica o ouvido e que se ouve a si mesma. Existe uma luz que modifica o olho, que produz o olho como órgão e que cria uma zona de diferenciação de heterogeneidade da própria luz. Os órgãos são válvulas de um corpo sem órgãos, são aliados de um corpo sem órgãos. É preciso liberar os órgãos do organismo. Spinoza resume isso tudo dizendo: é preciso aumentar capacidade de ser afetado. O homem livre é aquele cuja capacidade de afetar e ser afetado vai ao máximo. A capacidade de ser afetado, de um ponto de vista, é uma capacidade sensível. Vai se refinando a sensibilidade, vai sendo modificado, vira canal e receptáculos dos mais finos e sutis movimentos. Isso é um exercício, é uma pratica, pois a maquina segmentaria do movimento, que chamamos de organismo ou regime de luz, ela desqualifica essas nuances. É uma maquina grosseira, faz com que se perca o movimento próprio das coisas, do corpo ou dos afetos que atravessam, assim como nos regimes de signo, se perde o tempo próprio do pensamento. É preciso reconquistar esses movimentos finos e desse ponto de vista seremos julgados às vezes como idiotas, palhaços, loucos, imprestáveis, inúteis, catatônicos, esquizofrênicos, psicóticos, delinqüentes. Pois esses movimentos podem ser criminosos. Ontem assistimos um filme do Eric Rohmer, A Marquesa de Or, onde o personagem principal que é um conde guerreiro, se excede o tempo inteiro no afeto, há um excesso intensivo, que bota em cheque toda a ordem temporal, toda a segmentação organizada, bem comportada, da etiqueta, dos bons modos, do que é oportuno, não inconveniente, de modo necessário, pois o afeto nem pode se separar daquilo que ele é e faz variar e acontecer. No entanto gera um mal estar, um enfrentamento, um contraste. Há uma sensibilidade desse guerreiro, uma contemplação tal das nuances e sutilezas e ele é o mais sensível de todos que estão ali e, no entanto ele é um guerreiro, combatente, vitorioso, bem sucedido nas suas batalhas, mas ele não vive esse plano de valores. Ele valoriza, ele afirma os movimentos próprios que o atravessa, pois ele afirma os movimentos próprios que vem de fora. Ele conquista uma capacidade receptiva sutil, fina e aberta ao maximo que apreende as nuances de cada movimento. Essa capacidade receptiva pode começar com uma pratica sensível, mas ela vai além da sensibilidade, dessa sensibilidade orgânica que se tem com o olho, o ouvido, o olfato, a gustação e o tato. Existe um movimento que gera essa sensibilidade. O próprio corpo apreende esse anterior dele mesmo enquanto ainda não é sensível, nem imagem. O poder exerce um controle, produzindo uma zona de luz e se apoderando dessa zona. Ao se apoderar dessa zona ele inscreve nessa zona o que deve ser respondido. É como se essa zona de luz fosse o problema que o poder colocasse de fora para o meu corpo responder. Assim como o professor em sala de aula joga para o aluno um problema que é formulado abstratamente que ele nem sabe para o que serve, não tem nada a ver com o modo de vida do aluno, mas ele se obriga a responder aquilo. É uma palavra de ordem, um comando que vem de fora. Se isso se dá no campo do pensamento e dá linguagem isso também se dá no campo do corpo e do movimento através dessa captura, dessa apropriação da zona de luz, ou de uma maquina que ilumina e sombreia, que esconde e que mostra. Mostra aquilo que faz o corpo reagir e esconde aquilo que faz com que o corpo pudesse reagir de modo à desconsolidar, a esfacelar ou ameaçar esse regime corpóreo necessário para a sociedade. As zonas de sombra são uma espécie de desinvestimento, de ocultação daquilo que não deve ser estimulado e as de luz são as que vão gerar um encadeamento de estímulos segundo o qual o corpo se pendura no organismo. Na medida em que se atende ao estimulo, à percepção – e isso é subliminar, acontece numa zona inconsciente do corpo – elimina-se a distancia da variação. No maximo se liga a uma variável. É como que se aquela zona iluminada da percepção fosse uma constante que exigisse de mim uma atitude, uma resposta. Minha resposta pode até variar. Por exemplo, o jeito de se entrar num ônibus, tem vários jeitos, o do velho, o da criança, etc., mas existem zonas que são permitidas e zonas que são proibidas de movimentação ou gesticulação ou de encadeamento de gestos e movimentos. Estabelece-se uma constante num regime de luz e ao mesmo tempo uma zona que não é de indeterminação, como diria Bérgson, mas de indeterminação capturada, sobrecodificada, onde se estabelece certos possíveis, ruins e maus, e todo um campo de impossibilidades. A época esta reduzida a essa zona de possibilidade para o bem e para o mal, para o útil e nocivo, para o verdadeiro e o enganador, mas faz com que o corpo e o movimento tenham a opção extremamente limitada em função de uma demanda já fixada. De uma inscrição nessa zona iluminada, semiótica.. É todo o campo da semiótica que é trabalhado aqui, pelo poder. E perde-se a variação. Pode até ser uma variável, mas como acidente de uma constante, uma modificação permitida de uma constante. Mas aquela variação pura que me mantem em contato com essa zona do movimento é quebrada. Não pode se permitir variar e experimentar desse ponto de vista desse regime de luz, pois tem que atender aquela resposta inscrita nesse campo iluminado. Entre o problema, a pergunta que a percepção já codificada me coloca e a minha resposta motora existe todo um preenchimento, um procedimento que impede a zona de experimentação do corpo, que desqualifica essa experimentação estética do corpo. A ideia sempre é que o corpo seja competente, diligente, eficiente. Competência é mais uma coisa do espírito, o corpo é mais eficiência. Assim como a educação instrui e capacita. Esse regime orgânico torna o meu individuo, o meu corpo físico eficaz, diligente, prestativo, operador. Dada a demanda prontamente se instaura o processo da resposta. Nessa medida, também o meu corpo existe como o meu espírito. Ele existe quando se torna eficaz, útil, utilizável, disponível. É preciso que eu esteja sempre disponível. Mecanismos de esconjuração disso, exemplo, obra do Herman Melville, Bartleby, o Escriturário, onde ele vai inventar o famoso enunciado “prefiro não”. Não é não fazer, mas prefiro não. Não fazer já é do corpo. Antes de tudo é não, suspende qualquer demanda, a do pensamento, a do corpo, de que zona for. Do ponto de vista do corpo é o vazio e do ponto de vista do pensamento é o entre tempo. Começa-se então a se permitir experimentar e o movimento começa a se apresentar nas suas nuances na medida em que se suspende. É como a espreita animal, retoma-se o animal em você. Precisamos retomar nosso corpo animal. Nós somos animais. Precisamos reconquistar a nossa cabeça, não do ponto de vista de uma instância organizada, mas a cabeça como corpo e não como rosto. A cabeça como rosto não existe, nós já perdemos a cabeça, na medida em que o rosto instaurou em nós. Mas o rosto é algo tão incrível que ele fez não só que perdêssemos a cabeça, mas o corpo inteiro. Nosso próprio corpo já é rostificado. Precisamos desrostificar o corpo e reconquistar o corpo na sua potencia de máscara e não de rosto. É uma diferença sutil, mas extremamente importante, essa entre rosto e mascara. Na verdade é uma diferença radical. É uma diferença de natureza. Uma coisa é mascara, outra é persona, outra é a pessoa enquanto rosto. O rosto que faz com que a gente perca a cabeça, põe o racional e a consciência no lugar do animal. Retomar o animal não significa uma espécie de regressão. O animal tem o animal próprio, que não é o animal cachorro, cavalo, macaco. É preciso reconquistar essa dimensão do animalizar que se apresenta num modo de perceber como uma espreita. Ao invés de perceber e atender imediatamente um signo já formatado como uma verdade do corpo, você suspende, prefiro não, deixa o vazio entrar e começa a dilatar o próprio movimento. Quanto mais se dilata mais nuances vão aparecendo. É o distanciamento. Você aumenta o horizonte, cria uma panorâmica máxima, e ao mesmo tempo em que se aumenta a amplitude, aumenta-se o foco. Assim como o animal que se lança na caça depois de ficar naquela espreita catatônica, pelo máximo de alargamento que vira um único foco, uma flecha. Se formos capazes de reconquistar esse corpo em nós, estaremos reconquistando essa dimensão do movimento imanente e intensivo. Isso é um exercício, uma prática, e existem várias outras maneiras de se fazer isso, inclusive a serem inventadas. Por exemplo, ficar em jejum, ficar sem dormir, dormir demais, comer demais, beber demais. Exercitar o ultrapassamento dos limites do corpo, encontrar limiares. Ser um corpo excessivo. Em relação ao filme de ontem o primeiro enunciado é que havia um extremo, tudo era extremo, mas como uma pontuação negativa. Precisamos reconquistar a dimensão afirmativa do extremo. Fazer com que nosso corpo habite os extremos dele mesmo, cultivar o extremo do corpo. Levá-lo a limiares onde de modo normal e organizado ele mudaria de direção e ultrapassar Onde para a fome? O que é levar um corpo a fadiga? Ao esgotamento? Ou ao máximo de vitalização?A partir de nossas práticas diárias. O que quer que façamos, ao invés de operar um corte, continua um pouco mais ou corta antes. As drogas muitas vezes têm esse tipo de efeito, mas o problema é que, na medida em que o corpo não faz a lição de casa ele fica dependente. As drogas operam uma ampliação perceptiva e afetiva, põe a nossa energia em variação. Não é a toa que esses discursos moralistas anti-drogas não funcionam porque há uma hipocrisia em dizer que a droga faz mal. Depende do uso. A questão é que bem a droga faz? E ela faz, senão as pessoas não usariam. Porque uma sociedade que desqualifica essas zonas intensivas tem que reagir a ação das drogas que liberam novamente essas zonas intensivas? De que se trata então? São dois problemas aqui. Um é a falsa clareza que a droga inspira. Aparentemente ela te faz sentir que vê mais que os outros, que sabe mais que os outros. Você apreende muito mais nuances do que os outros apreendem. Isso é verdade num certo sentido. O problema é que não muda de natureza a qualidade desse saber em relação a um não drogado, que está submetido a um regime do saber social, na medida em que simplesmente desloca-se aquele sujeito que percebe. Vai-se além do que se percebia antes, atinge outras partes dos limiares de percepção, mas o modo de percepção é o mesmo. O modo de percepção é uma relação entre sujeito e objeto, ou entre sujeitos, ou entre objetos. Ou seja, é sempre entre termos. Não se apreende a percepção do meio, o acontecimento que faz perceber, o percepto da percepção, a potencia que varia no acontecimento. Apreende-se só o efeito dessa potencia e acha que é esse efeito que percebe a coisa que está fora. Então vai apenas infinitizar, multiplicar as nuances, ser um sujeito mais diferenciado, mas a qualidade dessa diferença vai ser da mesma natureza daquela dos seres embotados por um modo de pensamento instituído, que é um gênero de imaginação. É preciso romper com essa barreira, mudar o modo de pensar, de sentir, de agir, enfim mudar o modo de desejar. Se não mudar o modo de desejar, não se faz nada. A gente não faz a lição de casa. Por isso a droga gera dependência. Ela pode gerar dependência justamente porque essa experimentação não é conquistada, ela se mantem sempre numa linha de dependência. E porque a dependência segue? Porque justamente não é um sujeito em mim que percebe, ou o desejo não começa em mim e sim no próprio acontecimento. Ao se apreender essa zona, apreende-se também a fonte e dessa forma tem-se a autonomia, não precisa nem da droga. Serve-se dela até o ponto que se tem essa autonomia e, quem sabe, nem precisaria dela. Esse é o exercício que se deve fazer. Não se trata de moralizar nada. Usa-se o que for necessário. Aquilo que diz Deleuse no Abcedário é interessante por que ele foi alcoólatra e ele tem a experiência do alcoolismo, que tem a mesma dimensão da droga. Ele diz que o critério para parar é quando você se torna improdutivo, não é mais capaz de produzir. Porque a questão do álcool, da droga e outras substâncias é que é preciso uma espécie de sacrifício do corpo. Ela cobra algo a mais que de repente sem ela, não precisaria. E aí é uma experiência singular de cada um. Se ela te põe numa zona de intensidade que sem ela não atingiria ou não suportaria, aí é interessante o seu uso, mas sempre com essa presença, de conquistar o que se passa nessa zona e aí você novamente ganha autonomia. Isso o corpo pode também e essa seria a maneira como o corpo de fato vá ao máximo do que ele pode na sua capacidade receptiva e na sua capacidade de afetar, na sua capacidade criativa, de inventar modificações. O que faz o poder? Separa-nos da capacidade receptiva, ele normatiza a receptividade e a sensibilidade. Onde está a zona de experimentação de uma sociedade? A arte é uma zona de experimentação. A doença, embora a sociedade não admita isso, é uma zona de experimentação, é um campo maravilhoso, mas é sempre vista de modo negativo. Na arte, que tem uma positividade, como a sociedade policia as sensações permitidas? Como ela normatiza a experimentação. Como ela submete a experimentação dos artistas. Através dos seus críticos. Os críticos enquanto policiais de sensações. E isso funciona porque os artistas dependem de reconhecimento. Artista que está submetido ao reconhecimento, ao espelho social, acaba de alguma maneira concedendo. É preciso quebrar esse espelho também. Hoje em dia existe um tipo de queixa no meio artístico, não há público, e precisa se formar publico. Formar público prá que? Para entender o que os novos artistas estão falando? Dar consciência a eles? Ou será que o artista que é artista, que não está submetido a uma critica em um espelho, ou que se relaciona com a critica de maneira criativa, é capaz de gerar sensações que ultrapassa aquele limite perceptivo, afetivo, aquela zona de sensação estagnada ou permitida numa sociedade? Mas ultrapassa porque é capaz de ultrapassar, porque bebe na fonte, nesse imediato do movimento que atravessa o corpo. Nessa medida, ao invés de precisar de um público formado, ele engendra uma nova sensação. Ele presenteia ou atravessa o público com uma sensação nova, que não precisa ser entendida, mas tem uma potencia de modificação, de afeto. Aquela sensação gerada ganha uma autonomia e vai fazer o estrago que tem que fazer. Que bom que ela pode fazer. Pode quebrar, desconstruir os velhos modos de perceber. Como o filme que vimos ontem, um filme simples, de época e podemos ver as reações que ele provoca nas pessoas: “há uma arrogância nele”; “há uma prepotência nele”; ”há um sentimento de culpa nele”. Não tinha nada disso. Quer dizer, mexe, incomoda. Existem coisas que as pessoas não suportam sem sentir culpa, ou sem sentir uma arrogância ou prepotência. Não tem corpo para aquilo, mas a obra de arte provoca o corpo. Não pede público formado, está gerando uma sensação livre, não depende do público. A procura da compreensão está ligada ao reconhecimento e o reconhecimento ligado à bilheteria, ao patrocínio, a sustentação. Esse tipo de coisa está ligado a um falso tipo de valor. Como se produz valor? É o afeto, o modo de vida que produz valor, antes do dinheiro existe uma geração de valor. Você gera uma sensação, quer coisa mais valiosa que uma sensação? Um quadro de Van Gogh hoje vale muito, é uma sensação. O que vale? Ninguém sabe, é aquela bolsa, aquela relação entre a procura e a oferta em cima de algo único, gerado a partir de uma capacidade receptiva e de uma potencia criativa. É isso que gera valor. Se o artista está nessa zona, ele não deveria se preocupar com a bilheteria, mesmo que passe maus bocados. Não dá prá fazer com que a sua produção artística dependa de um certo nível social de consciência, de aprendizado, de reconhecimento. É por isso que esses projetos de formação de público são extremamente reacionários. São projetos mercadológicos, de ampliação de mercado. É como incluir o pobre no mercado para que ele consuma mais, incluir também o povo no mercado da arte. Nunca os teatros produziram tanto em São Paulo. E os teatros seguem vazios, a não ser aqueles espetáculos globais, que funcionam naquele modo vulgar de sensações, naquela linguagem bem rasteira, novelesca. O que se passa? Porque não construímos esse corpo capaz de relacionar com potencias desconhecidas, estranhas. Porque buscamos muletas para se relacionar com essas potencias? Até existem certas muletas que são interessantes, de passagem. Mas o problema é aquele que a gente acha que a existência se passa inteiramente sobre uma muleta. A existência tem sempre que ser mediada, o movimento do corpo tem sempre que ser mediado, o tempo do pensamento tem sempre que ser mediado porque não encontramos o imediato e porque não suportamos a vida no imediato. Talvez o álcool, a droga, o sexo, seja lá o que for, torne a vida mais interessante e capaz de apreender mais essas potencias estranhas. Isso é interessante, são elementos aliados. Mas desde que não se perca o foco de que ao movimento não falta nada. Ao conquistar isso, deixa-se de fazer concessão, deixa de achar que no movimento existe algum tipo de impotência, de inconseqüência que demandaria uma exterioridade a ele. Deixa de investir no exterior para obter uma vantagem, um reconhecimento para ficar de pé. Fica de pé por si só. É o movimento, enquanto movimento que se move em você que te deixa de pé e não um movimento legitimado, verificado, autenticado, autorizado por um organismo superior. Para isso é preciso exercer uma espécie de imperceptibilidade, desfazer certas zonas iluminadas em nós mesmos. Da mesma maneira que nós percebemos ou que algo é percebido a partir do próprio objeto, do próprio corpo ou do outro, somos também zonas que emite luz. Somos também objetos de percepção e nessa medida, emitimos signos também. E ao emitirmos signos é como o animal, esse que precisamos reconquistar, esse que tem o devir imperceptível. O animal se camufla, se torna igual a paisagem. Um peixe se torna parecido a paisagem do coral. A pantera cor de rosa pinta o muro de rosa e tudo vira rosa. Como diz Deleuze, ser um homem comum, ser como todo mundo, um devir mundo de nós mesmos, confundir com a paisagem, tornar-se imperceptível, desimportante, não chamar a atenção para essa zonas não serem passiveis de julgamento, de perseguição, de captura. Nessa medida reconquista-se uma confiança e desinveste no medo do corpo sofrer com uma represália. Desinvestindo no medo se ganha mais potencia de receptividade, de abertura e começa-se a enamorar-se do estranho. Começa a adquirir gosto pelo estranho, pelas zonas perigosas de acontecimento do corpo. E assim conquista a arte das doses, da prudência, ou seja, a experimentação de ultrapassar limiares, mas sem perder a natureza, a continuidade de si mesmo. E se perder, que seja por um breve momento, retomar em seguida. A gente sabe até pode ir, na medida em que a gente sai de si mesmo, mas ao mesmo tempo está com um pé dentro de si mesmo. Está ao mesmo tempo dentro, fora e na fronteira. Ser extremista, ousado, implica prudência. Para que o extremo seja mais extremo é preciso prudência. Para que a ousadia seja mais ousada é preciso prudência. A prudência é o que se põe no lugar do medo, é um cuidado com o ativo, com o intensivo, com as forças afirmativas, com essa capacidade receptiva. É uma espécie de responsabilidade para que a vida não vire trapo, para não se separar da capacidade criativa. A prudência é uma função da capacidade criativa. Nessa medida, vão se ampliando as zonas de receptividade, pois para receber é preciso poder receber, tem que se preparar para isso, não é receber de qualquer maneira. Isso seria uma inconseqüência. Imaginar que o desejo é festa! Um expontaneismo! Não! Não é de qualquer maneira. A natureza tem singularidades na composição das relações. As relações se compõem segundo jeitos. Existem bons e maus jeitos. É preciso criar esse refinamento que faz com que a gente aumente a potencia de compor. Não há criação sem a potencia de composição. A criação é uma composição, mas composição de singularidades, de relações singulares, de tempos próprios, de movimentos próprios. Só se compõe se não esmagar, não descuidar do movimento do outro e do seu também. É preciso encontrar uma zona comum. Uma dupla afirmação que afirma, ao mesmo tempo, o outro e a você mesmo e que não é uma zona universal de comunicação de uma forma que seria a mesma em mim e no outro. Jamais é isso. Mas é uma zona comum sem a qual não haveria relação e uma dupla singularização, uma singularização não tendo nada a ver com outra singularização, mas criando um duplo processo afirmativo, um devir ativo nesse encontro. Essas zonas de confiança é que podemos intervir e criar para que o corpo comece a se permitir, para sair dessa zona de medo. Nosso corpo é todo elétrico, tenso, se eletrifica, na medida em que ele encontra e isso pode provocar uma contração ou uma tensão que o amplia. O poder instala uma paranóia. As sociedades vivem sob um regime de desconfiança da experimentação corpórea. As religiões, os moralismos, o bom comportamento que é cultivado em sociedade instaura uma zona de medo e desconfiança tal que proíbe o corpo de experimentar e, ao mesmo tempo, aquilo que está ali para o corpo experimentar segue ali, acontecendo, mas do pior modo em nós. Isso vira aquilo que Reich chamava de couraça. Começa a contrair e produzir um corpo feio, pesado, cheio de nós, cimentado, marcado. Faz aliança com o que Nietzsche chama de diabo. O espírito de gravidade que domina em você e perde-se o corpo que dança, o corpo bailarino. Pois se ele investir nisso, ele é punido. Há um regime de rejeição, de punição. É por isso que na relação tenciona-se de modo reativo, ao invés de se tencionar de modo intensivo e ativo. Aí que o hábito vira uma muleta confortável onde já se sabe de qual modo se comportar. É uma zona onde você se desresposabiliza da potencia criativa. Não, aqui eu circulo muito bem, ninguém vai falar mal de mim, se eu agir assim não serei rejeitado. O hábito é uma espécie de zona de conforto necessário para o corpo impotente. Como diz Nietzsche, são hábitos de longa duração. O hábito em si mesmo também é uma potencia. Os de curta duração, ou melhor, o hábito que mantem o corpo em movimento ou em experimentação, que não escraviza, que não cria estereótipos, não cria esse corpo médio. O corpo médio é uma espécie de zona frouxa do movimento. O movimento passa e ele só é valorizado do ponto de vista do deslocamento. A intensidade que é a essência do movimento mesmo, não é contemplada, a não que seja canalizada para uma zona de deslocamento onde lá na ponta tem um pedágio e um extrator desse movimento. Hoje em dia as coisas estão mais sofisticadas. Na zona do vale do silício os trabalhadores são jovens que usam bermuda, sandália, barbudo, que não tem tempo nem hora para produzir que são investidos ao máximo na sua criatividade. Mas o que tem sempre no horizonte desses jovens, desse novo modo de produzir, é aquele tempo e movimento que não é o do criador, que é o do capital, o da reprodução rápida, o da capacidade de reproduzir acumulação. É esse tempo que está no horizonte da produção e da criação. Estimula-se a produção e a criação, a intensidade, mas no final tem aquilo que impede a continuidade da criação ou que torna o criador refém de um patrocinador, de uma demanda exterior, quando isso é fatal para a autonomia da vida. Só se mantem autônomo se, no acabamento de um processo, esse próprio acabamento já é plataforma de lançamento para um novo. Não há interrupçãp, há uma continuidade, mas o capital interrompe, ele corta esse processo. Ele vai dizer aqui já está otimizado para que reproduza capital, quando às vezes a questão será seguir noutra variação, só que iria se tornar inútil do ponto de vista da axiomática capitalista. O corpo também é “violentado” pelo movimento. Esse violentado não tem nada a ver com violência. É no sentido de uma urgência, há uma espécie de constrangimento, a coisa aparece, se precipita e você tem que dar conta daquilo. O corpo tem essa mesma questão problemática. O corpo é violentado pelo movimento assim como o pensamento pelo acontecimento e essa zona do fora. Na medida em que me torno capaz de receber, sou constrangido e eu mesmo tomo gosto por isso, eu chamo isso, que venha mais caos. Quanto mais caos ou desordem do ponto de vista daqueles corpos dóceis e organizados, mas para esse corpo preparado é fonte de enriquecimento, mais eu sou capaz de criar. Para dar vazão à entrada de mais caos ou dessa zona virtual do movimento é preciso, de alguma maneira, ter encontrado um combustível nessa abertura. Para que essa abertura se torne combustível do próprio movimento é preciso que esse movimento seja dobrado, mas não segmentado, que seja conquistado como uma força que estava fora, e vira uma força aliada, que está dentro agora, que coexiste com as outras forças do ponto de vista do movimento. Ou seja, heterogeneidade de movimentos que coexistem em mim e ampliam minha capacidade receptiva porque com esse novo movimento dobrado, sou capaz de receber ainda mais movimentos heterogêneos, estranhos e caóticos, do ponto de vista de uma vida formatada. Aumentando minha capacidade receptiva e essa coexistência desses movimentos dobrados eu sou capaz de modificar e criar ainda mais. Isso é um crescente que não tem fim. Quanto mais sou capaz de ser modificado, mais sou capaz de modificar. Isso que é liberdade. Liberdade é uma coisa efetiva, é um preenchimento da nossa capacidade de existir com ações que são sempre ativas e atos afirmativos do pensamento. Dessa forma eu amplio o horizonte e essa zona de abertura, ao invés de ser uma zona mais susceptível de morrer, passa a ser uma zona que vitaliza ainda mais a minha vida. Amplio a abertura e tenho mais combustível para acontecer. Isso não é humano. O homem tem que se desumanizar, isso que é ultrapassar o homem. Nietzsche já dizia, o homem é um animal extremamente reativo, do ponto de vista da forma, ele está formatado. E a forma dele se funda no negativo do acontecimento do pensamento e do corpo. É essa postura já travada do homem. O homem de antemão já desconfia do acontecimento, da diferença. A diferença é perigosa, te põe em variação. Ele desconfia porque está fraco, ou porque não se preparou, é preciso ir se preparando, conquistando. Identificar-se com o que comanda na natureza, com o que gera e produz identidade. Esse comando tem que estar em nós também, ou seja, criar eternidade a partir de nós. É isso que é não ser apenas parte, mas tomar parte da natureza. Isso acontece também do ponto de vista do corpo, enquanto uma dimensão autônoma. Há um infinito do corpo que temos que reconquistar. Isso é bem espinozista, pois Spinoza vai dizer que a natureza naturante – o que ele chama de deus ou substância- é constituída por infinitos atributos que são infinitos. Atributo é uma potencia, uma capacidade de acontecer infinitamente, uma potencia infinita de variar segundo uma certa maneira. O atributo pensamento, em Spinoza, é uma potencia infinita de variar segundo a modificação de produzir ideias. Há um infinito das ideias. Há uma potencia infinita da natureza produzir ideias. ideias implicam um ser próprio, singular que não é o mesmo do movimento. O movimento tem outro ser, outra maneira de ser. E se essa potencia de variar é infinito e é único, então é incomparável. Ou seja, o atributo, além de ser um ser comum é também uma singularidade que não se compara. Para se comparar seria necessário um fundamento que não estaria nele e dependeria de algo, ele seria dependente. O pensamento seria dependente de deus, ou do estado, ou sei lá o que. Se isso acontece com o pensamento imagine do ponto de vista do corpo! Existe uma zona autônoma do corpo, que Spinoza chama de atributo extensão, que é o ser do movimento. Não há movimento, não há corpo que não esteja no atributo extensão. O atributo extensão é uma potencia infinita da natureza se mover e variar o movimento. Há uma continuidade do atributo extensão, uma continuidade de todos os corpos, dos movimentos. O movimento é infinito e contínuo. Temos que nos instaurar nessa continuidade. Isso que é apreender o imediato do movimento. Não é o instantâneo. O imediato é instalar-se, instaurar-se nessa continuidade intensiva e que tem espessura. Imediato não é o instante, o imediato é aquilo que se auto sustenta nessa continuidade infinita. Isso existe em nós, alias não estaríamos aqui se não existisse, mas quase nunca nos aproveitamos disso. Se disserem que usamos apenas 10% da nossa potencia cerebral, eu diria que usamos nem 1 % dessa potencia do movimento ou do pensamento. Um desperdício total. O homem ainda é um supérfluo, como diria Nietzsche. Aquele que não faz a diferença, aquele que não pode produzir eternidade junto com a natureza. O homem é quase um parasita da natureza, claro do nosso ponto máximo de critica, pois existem muitas coisas interessantes que o homem faz. Mas aqui estamos tratando dessa reconquista do imediato e aí é um desperdício mesmo, pois se não se reconquista o imediato não se faz a diferença. Ou faz uma diferença que é trocável, negociável. A diferença da troca, que é substituível, então isso não diferença, é uma falsa diferença. A potencia acontece simultaneamente no corpo e no pensamento. Há uma coexistência da potencia que se atualiza como movimento e da potencia que se atualiza enquanto pensamento. É a mesma potencia que se atualiza. Existem várias portas de entrada e é por isso que nomeamos diferentemente: experiência do corpo, do pensamento. Mas todas atingem a potencia. Você vai do corpo a potencia, do pensamento a potencia. Você encontra o pensamento através do corpo porque o corpo é potencia, o pensamento é potencia, é assim que você encontra os dois. Não é que um representa o outro, ou é superior ao outro. Não há uma eminência do pensamento em relação ao corpo ou vice versa, há uma autonomia dos dois. O que se passa no movimento só se passa de modo autônomo e diferencial porque há um inesgotável, um infinito do movimento. Da mesma maneira que se passa no pensamento de modo único, singular e autônomo, só é autônomo e singular porque há um infinito, um inesgotável do pensamento. Não há, portanto um infinito que se sobrepõe a outro infinito. Um infinito não pode comandar outro infinito. O infinito se basta. É essa autonomia. Nós geralmente tratamos o corpo como aquilo que tem uma espécie de subordem que deve receber uma ordem superior, do pensamento, da consciência, da razão, ou da moral. Descartes mesmo, ao acreditar que somos um puro cogito, um eu solipicista, um sujeito que pensa isolado de tudo – mas que tem corpo ao mesmo tempo – e na medida em que isola radicalmente o espírito do corpo, não sabe como mais como ligar espírito ao corpo. Assim é capaz de ideias bizarras como a de glândula pineal que faz a comunicação entre espírito e corpo, que repassa a ordem que a consciência daria ao corpo. É como que se ao ter uma ideia eu sou capaz de comandar o corpo. Spinoza diz, a essência de um escravo, se define o servo, ou aquele que está separado do que pode, inclusive ele usa um poeta romano para dizer: “eu sei o que é melhor e quero o que é melhor mas sempre acabo fazendo o pior”. Isso significa que a consciência não pode nada sobre o corpo. Ou que uma ideia não é nada sem afeto. É necessário apreender a força que comanda e não a ideia, o consciente, o espiritual. Tanto que uma pessoa não consegue parar com um vicio. A droga, a bebida, mesmo que seja uma coisa torta, é uma maneira torta de se escapar desse esmagamento da vida, é uma espécie de pedido de socorro, dessa sufocação e esmagamento do corpo. É porque se esmagam os tempos próprios e os movimentos próprios, que se descuidam disso. Aliás, é isso que é a violência. O que é a violência? A essência da violência é esmagar os tempos e movimentos próprios. É por isso que podemos dizer, com todas as letras, que a primeira e a maior de todas as violências é a da lei, é do universal, a da forma. A forma é violenta, fascista. Não é a forma que vai nos salvar dos fascismos e totalitarismos. A escola de Frankfurt, Hanna Arendt, Chomsky, esse povo todo, esses democratas, os direitos humanos, as formas universais. Tudo que se baseia na forma está reproduzindo os micro fascismos porque esmaga os movimentos e os tempos. A forma não contempla nem um movimento nem tempo próprio. A forma é efeito, não é essência nem causa de nada. Mas se eu abro a forma numa linha, aí começa a mudar. Desestratifique a forma, faça da forma uma linha e singularize. Existe sempre uma atualização necessária, mas posso atualizar com forma ou com linha. Torne-se uma linha no acontecimento, seja enquanto linha de movimento ou de tempo. E uma linha labiríntica, tortuosa que não obedece a uma teleologia, a um recorte exterior, a um iluminismo na percepção, a uma semiótica ou a um sistema discursivo. São linhas tortuosas do ponto de vista da lei, da forma ou do organismo, mas são linhas retas do ponto de vista da afirmação. Precisamos nos tornar linhas retas, precisas rigorosas, anexatas, nem exatas, nem inexatas, e sim anexatas. Fora da norma, isto é aquém ou alem da norma. Anomal, como diria Jorge Camilie, nem normal e nem anormal. Habitar esse extremo que faz com que a afirmação esteja sempre colada imediatamente. Dessa maneira somos necessariamente uma reta, mas ela opera sempre tortuosidades, diferenciações. Funciona sempre como uma curva e uma tangente. É uma diferenciação inclusiva, que contempla tudo aquilo que aparentemente, do ponto de vista de uma disjunção exclusiva eliminaria, a excluiria. Ao optar um caminho, deixo todos os outros, isso seria a escolha do ponto de vista reativa. A escolha nobre, ética, é aquela que ao optar uma caminho traz todos os outros que potencializam a vida. Esse processo de afirmação é antes de tudo uma tomada de gosto. É por a estética na frente da moral. A estética enquanto potencia plástica ou de metamorfose. Eu dizia antes que o domínio do corpo é o domínio das ações e das paixões. Onde eu apreendo essa zona autônoma de experiências é através das ações e das paixões que atravessam meu corpo. É um abrir que não vem de uma consciência, a não ser imaginariamente, é só não atrapalhar, é só ficar quieto. Como diz Deleuze, não me mexo muito para não espantar os devires. Ao se ficar bem quieto começa a se passar coisas que jamais se suspeitaria que acontecessem em outro estado. O acontecimento já está se dando. É preciso que a nossa atenção coincida com ele e saia de uma consciência que é efeito. É esse deslocamento. Isso implica em um outro uso da dor. A gente não faz porque machuca e machuca porque nos desarticula, nos enfraquece. Do ponto de vista que estávamos acomodados. A gente não suporta esse enfraquecimento e a dor e a tristeza que vem disso, a gente acha que é uma doença, um mal e rapidinho desinveste disso. É por isso que eu dizia, é preciso ir além desses limites, experimentar um pouco alem. Dói? Deixa doer um pouco mais. Entristeceu? Entristece um pouco mais. Tá com sono? Não dorme já. Lógico, isso com doses. Sair da constante que é o nosso preconceito, que é aquilo que faz opinar sobre o ponto de vista do bom senso e do senso comum, daquilo que é familiar, que é confiado, daquilo que nos dá esperança, felicidade, reconhecimento. Quando começamos a ter o gosto pela zona problemática e perigosa da vida vamos perceber que aqueles traços negativos que eram atribuídos a essa zona começam a desaparecer. Afinal não era esse bicho de sete cabeças, não era esse monstro todo. Começa a experimentar e ter confiança. É assim que se faz a lição de casa, ter outra relação com a dor e o sofrimento, não se sentir coitadinho, miserável, solitário, abandonado. Se estiver abandonado, aproveita porque tem coisas que só dá prá fazer sozinho e que você nunca faz, pois está sempre com os outros e nunca vai fazer. Somos também piedosos com os outros, pois somos piedosos conosco. É ter um gosto pela crueldade, no sentido de deixar entrar essas zonas perigosas e problemáticas, se machucar um pouco mais sem se sentir um miserável. Fazer da modificação uma excitação. É possível isso? É claro que sim. Machuca mais excita e essa excitação de repente esconde um presente. No livro 3 do Mil Platôs existe um platô que diz como fazer para si um corpo sem órgãos. Se não fizermos o nosso próprio corpo sem órgãos, ninguém vai fazer por nós e isso não se aprende na escola, não existe manual de instrução, é uma zona de experimentação. Masoch é um exemplo de corpo sem órgãos. Masoch, assim como Kleist, na literatura, cada um inventa seu corpo guerreiro, seu corpo animal, o devir animal da mulher, o devir mulher do guerreiro. Masoch inventa os dele, as suas maquinas para produzir um corpo sem órgãos e um dos protocolos que ele cria é de costurar o corpo, bloquear os órgãos porque é pelos órgãos que o desejo se escoa, se esgota ou se descarrega. Nada melhor pra manter uma sociedade amena, equilibrada, bem comportada, do que criar zonas de descarga. O prazer também é uma maneira de descarregar. A arte, a religião, a TV, também são mecanismos de descarga e de anti produção para uma sociedade de poder que precisa de estado para funcionar. Masoch cria uma reação. Ele cria um corpo costurado: costura vagina, cú, olho, orelha. Mas que sentido isso tem? Há uns psicanalistas rasos que interpretam assim: é que o cara se sente culpado com certos desejos então ele se pune antes para depois experimentar. Existe esse tipo de interpretação estúpida. O que Masoch faz, na verdade, é criar um bloqueio desse desejo que escoa, que escorre ou que se descarrega. Não porque ele é contra o prazer, é a qualidade do prazer que é criticado aqui. O que ele quer é um prazer intenso e não um prazer descarga. Vamos até esquecer a palavra prazer, o que ele quer é uma intensidade, seja de prazer, de dor, o que for, mas o que ele consegue são intensidades de dor. Más antes de tudo são intensidades. Criar um corpo sem órgãos para que ele seja povoado, atravessado e produza intensidades. Essa que é a ideia de criação de um corpo sem órgãos. Um corpo não organizado, uma matéria e um movimento que nos sustenta que não está segmentado, organizado, grampeado Na medida em que também utilizamos daquela formula de Kierkegard: “vejo somente movimentos”. Em vez de vermos coisas, figuras, imagens, vermos movimentos. Numa imagem, numa figura, numa coisa, será que conseguimos ver o movimento? Relacionar-se principalmente e imediatamente com esse movimento das coisas? É claro que a imagem, a figura, a coisa, a substancia vai estar lá, mas o movimento é primeiro. Sou capaz de me relacionar diretamente com o movimento? Só se fizer de mim mesmo um movimento. A potencia em variação do ponto de vista do corpo também tem que ser movimento. É o movimento que apreende o movimento. Não existe o outro sujeito que apreende ou vê o movimento. De alguma maneira eu preciso fazer um corpo sem órgãos para mim, ser uma zona, um platô de acontecimento ou de intensidade de movimento. Essa zona, esse limiar é o virtual do corpo. Essa conquista do virtual do corpo, o horizonte do corpo. Esse horizonte que é preciso liberar e inventar, porque ele não está pronto. Ele está dado e ao mesmo tempo tudo por fazer. Ele está dado porque não teria como se não tivesse esse horizonte. Uma coisa é ele estar dado, e eu sei isso, outra é tomar parte e conquistar isso. Eu tenho que fazer meu corpo sem órgãos, criar um corpo liso. O ponto de vista crítico é entender como que funciona a forma de conteúdo ou o regime de luz de uma sociedade que nos atravessa e nos constitui. E ao mesmo tempo, na desconstrução desse regime, que é uma certa lógica de relação de imagens através do uso da sensibilidade, liberar esse vazio do corpo, para que as intensidades comecem a aparecer, como operadores e variações imanentes do movimento. A tarefa segue sendo dupla: ao mesmo tempo em que experimenta, critica e cria. É preciso criar essas atmosferas de experimentação para nossa crítica não ser uma crítica ressentida, pois aí não seria crítica. Não ser uma crítica contra algo, mas dado algo, extraia daí um movimento e uma intensidade e não, dado algo, vou rebater esse algo que é contra mim. É mais sutil, a máquina de guerra se dá nessa zona perceptiva. Desestratificar para redisponibilizar as forças do corpo e não ir contra o extrato estabelecido que faz só perder energia e ficar ainda mais duro. Também não é uma espécie de concessão, isso é essencial, não há concessão a ser feita, não é preciso, porque não há conformismo, não há forma a se conformar. É preciso desfazer a forma. Não precisamos criar soníferos ou anestésicos para suportar certos processos de desconstrução, então mude o ritmo da desconstrução. A tal da arte das doses, mas sem anestesia, é com presença, olhar o movimento de frente, encarar mesmo. Ainda que leve quinhentos anos para fazer isso. Isso é da ordem da imaginação, esse tempo extenso. É como ler um livro, às vezes uma palavra, um enunciado te toma de um jeito que se você avançar vai ser de modo adaptado, conformado, passando por cima daquilo. Às vezes é preciso ficar ali, catatônico, igual um idiota. Porque não ser idiota de vez em quando? É não ter medo da avaliação do outro ou do que o outro espera de mim. É claro que na medida em que eu estou num jogo social, implica numa certa dinâmica e posso me despontencializar se produzir um efeito de muito estranhamento no outro e de repente desencadear uma paranoia tal no outro que ele pode me cercar de um jeito É preciso ter um cuidado estratégico com a reação do outro. Mas criar zonas protegidas desse olhar reativo.
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