terça-feira , 26 novembro 2024
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Aula 19 – Espinosa e o plano de imanência

Luiz Fuganti

Participante: se existe uma certa ordem que rege a natureza e, ao mesmo tempo, o homem é capaz de ter uma coparticipação no acontecimento, em que medida essa coparticipação dele não é mais do que ele para que o que tem que acontecer aconteça, ou seja, a necessidade se institui? Ou essa coparticipação dele está ligada a um livre arbítrio, a uma liberdade? Até que ponto liberdade e necessidade se relacionam?

Hoje temos um presente fantástico em relação a isso. Espero que atinjamos bem o entendimento sobre essa questão.

Participante: a minha questão é a do livre-arbítrio. É como se tivesse um paradoxo teórico, mesmo no que viemos falando, e em tudo que já li até hoje ele permanece.

Eu acho que a dúvida seria: na medida em que você é causa de si, que você é causa dos seus próprios afetos e, em alguma medida, comanda, o que é isso que comanda em você, que não é livre arbítrio. Porque o livre arbítrio está excluído na medida em que ele é uma ignorância de consciência. Então, quanto menos livre eu sou, mais eu acredito que eu sou livre no livre arbítrio. E quanto mais livre eu sou, mais forte eu sou e, nesse sentido, mais eu determino os meus afetos, mais eu me torno causa de mim mesmo. Então a questão é essa e é tudo que vamos desenvolver hoje aqui. Vou fazer um percurso para ver se deixamos isso claro, porque na realidade é sempre a questão da seleção dos encontros que vai levar a um aumento de potência; e segundo o aumento de potência você tem uma determinação de afetos que vêm ou de dentro ou de si, ou de fora – se ela é diminuta, vem de fora; se você aumenta a potência, vem de dentro. Mas o que seria esse dentro? Não é uma consciência, não é um sujeito. E a liberdade não é uma escolha entre formas, não é um desenvolvimento de formas.

Participante: a consciência participa da seleção?

Ela acaba participando secundariamente.

Então vamos tentar fazer um percurso para sintetizar o Espinosa hoje e na nossa próxima aula provavelmente eu vou entrar em Leibniz. Então hoje seria uma espécie de despedida parcial de Espinosa.

Do Espinosa nunca nos despedimos.

Acho que o que Espinosa traz de essencial na obra dele, na filosofia dele, é uma capacidade, enquanto filósofo, que é raro encontrar em filósofos, que acaba consistindo no seguinte: através da mais pura filosofia, ele conseguir fazer com que a vida seja reencontrada. Ou seja, levar a filosofia para fora da filosofia; ele cria um sistema, ele cria um esquema que, na realidade, é o que estamos chamando de plano de imanência ou de plano de consistência ou de plano de composição – hoje vamos esclarecer um pouquinho melhor as nuances desses termos; através disso ele consegue levar a vida no seu imediato, uma vida que não precisa de intermediação. Espinosa, nesse sentido, cria o mais puro plano de imanência. O plano de imanência não é um plano como um projeto, como um desenho ou como um programa; o plano é mais como um mapa, como uma geografia, é como uma tela que põe os afetos em contato imediato – o que seria um meio, um puro meio, mas não um meio como um intermediário, como intermediação; é um meio puro onde as coisas se dão. Então Espinosa quer encontrar esse meio, ele quer destituir os intermediários; e os intermediários todos, no fundo, se resumem num único nome, que é a transcendência.

Ou seja, qualquer ligação da existência a uma transcendência faz com que interponhamos entre a vida e a natureza um plano, uma instância, uma entidade que seria a mediadora, a avaliadora e a intérprete das nossas relações. Então, na medida em que eu ligo a existência a esse plano intermediário, eu invisto numa destituição da vida porque eu acredito que a vida precisa de organização.

Então eu destituo a vida da capacidade de composição: a composição não bastaria, eu acredito que a vida precisa se organizar, ela precisa ter uma ordem exterior a ela mesma. A composição elimina a hierarquia, a composição elimina essa lei abstrata: a ordem da Lei, a ordem do Estado, a ordem da moral, a ordem da religião – e as hierarquias implícitas nisso. Então essa organização ou esse plano transcendente de organização é um plano que todo homem que está separado do que pode, todo pensamento que está separado do que pode, todo corpo que está separado do que pode, necessita, demanda, clama por esse plano. Esse plano é solicitado como que uma âncora, uma instituição que gera segurança para uma vida demasiado flutuante, demasiado entregue à fortuna, ao acaso, à sorte, à contingência. Então a vida, o corpo, o pensamento, que estão separados do que podem, clamam por esse plano.

Mas esse clamar não é nem uma consciência que explicitaria essa demanda; na medida mesma em que eu já estou separado do que eu posso, esse plano se instala. É automática a instalação. E mais do que isso: ele é invisível, ele é imperceptível. A demanda de uma transcendência é como que inapreensível; então eu até posso dizer: “mas que plano? ”. Só que no meu modo de ser, de existir e de pensar eu já entro no sistema do julgamento, porque a própria vida, as próprias “ações” e “reações” (entre aspas porque aqui não tem ação, rigorosamente, só tem paixão – e paixão triste, ainda), esse conteúdo ou esse preenchimento da minha potência de ser afetado já é a minha própria punição, eu já estou sendo julgado aí, eu já estou entregue ao acaso dos encontros. E a ordem, essa organização exterior, se instaura ao mesmo tempo em que a minha vida já é frustrada, ela já não está colada no plano de composição, ela já não se compõe diretamente sem autorização de uma entidade fora dela; ela precisa de uma autoridade, ela precisa de uma referência exterior.

Então vimos, já, como isso se dá em função das ilusões de consciência, as três ilusões que estão fundadas numa ilusão fundamental – aquilo que a consciência faz: na medida em que ela não entende as causas, ela toma as causas pelos efeitos. E nessa mesma medida o efeito é sempre o efeito de um corpo sobre um outro corpo em que eu crio a ilusão de causa final, e em função disso eu tenho também a questão do afeto que acontece em mim, ou seja, da modificação que eu sofro. O que é o afeto? O afeto é sempre a passagem de um estado de mais realidade para menor realidade ou vice-versa; e essa passagem a própria consciência acompanha porque a consciência está colada ao desejo; então eu vou apreender a minha potência como sendo uma vontade que tem livre arbítrio e aí eu acredito também que eu sou a fonte das decisões e das minhas ações. Então a mesma ilusão de causa final, de modo invertido, a partir do sujeito, vira ilusão de decretos livres, de decisões livres, de livre arbítrio. E, na ausência de uma ordem objetiva ou de uma ordem subjetiva, eu crio a ordem teleológica: onde não tem ordem, não tem organização, é preciso a interferência de um Deus; então Deus providenciou tudo. E eu projeto em Deus a minha vontade e a minha consciência, como um pensamento infinito ou um entendimento infinito e uma vontade infinita. Então Deus que tudo pode, que tudo pensa, que é onipresente, que é isso e é aquilo, intervém, organiza e completa esse plano de organização que é transcendente. Então esse plano teológico – e teleológico, também – acaba sendo um investimento coletivo de todos os homens fracos: do escravo, do tirano e do sacerdote, aquela trilogia que é fruto da consciência. Então há um investimento, há uma vontade coletiva.

Aliás, essa noção de vontade coletiva até esclarece uma coisa que não é nosso assunto aqui objetivamente, mas que vou dar uma deixa sobre o que é um agenciamento coletivo de enunciação: quando você compõe as vontades sociais e investe em determinadas instituições, na linguagem mesma, os atos imanentes à linguagem são investidos a partir desse ponto de vista de uma sociedade fraca, e constituem uma lógica da negatividade, uma lógica inteira no interior da linguagem, de um regime de signos.
Vou voltar para o nosso tema. O efeito imediato em relação ao modo de vida humano, é que o modo de vida vai ser uma questão de dever, vai ser uma questão de moral; então esse ser, que está separado do que pode, vai precisar se pendurar, ou se referenciar, ou se rebater nesse plano teológico, o plano transcendente de organização. Do ponto de vista, então, do modo de vida, você vai ter um sistema de recompensas e de castigos; na medida em que você segue esse plano você é recompensado. Se você for suficientemente competente para se rebater nele e cumprir a demanda que ele exige de você, então você pode esperar recompensas e você sobrevive, você se mantém numa sobrevivência. E você será castigado se você não for suficientemente competente ou até se você ousar transgredi-lo – e aí vai ter uma gama de atribuições negativas: você pode ser louco, você pode ser criminoso, você pode ser doente – tem uma série de desclassificações. Isso do ponto de vista moral: então você vai ter o Bem e o Mal, desse ponto de vista moral, como um rebatimento sobre o plano; você remete a existência a um plano transcendente de organização.

Do ponto de vista lógico, ou do ponto de vista da razão, ou do ponto de vista do entendimento humano, você vai ter duas ilusões fundamentais. Uma é que a essência das coisas, o fundo das coisas ou a eternidade dos seres se fundam nas formas objetivas; e, no fundo, essas formas objetivas não são nada mais do que intensificações dos efeitos das marcas em mim; claro que, na medida em que o delírio é coletivo, que a coletividade inteira padece de uma escravidão – isso é a coisa mais evidente nas sociedades ocidentais – temos a ilusão de universalidade porque o sofrimento, ou a dor, o sentido da dor ou aquele signo formal é o mesmo em todos esses seres; há uma reprodução de sentido de época, digamos assim. Cria-se um sentido de época na medida em que a forma da subserviência é a mesma. Então acredita-se que haveria uma forma objetiva que estaria no fundo de todas as coisas, de todos os objetos; a essência dos objetos seria feita ou constituída por formas.
No caso dos sujeitos ou dos indivíduos do ponto de vista do pensamento, ou da consciência, há uma apreensão exatamente de que o modo de que Espinosa fala não é um modo, mas é uma substância; então haveria uma substância em mim: uma substância ontológica e um sujeito lógico e moral. A substância ontológica é essa ilusão de consciência que é apreendida na passagem afetiva, é sempre uma passagem contínua; e esse sentimento de continuidade dá a impressão de que eu tenho uma vontade e que a vontade segue um entendimento; e esse entendimento seria dado pela força da consciência, ou pela faculdade da consciência, em organizar as coisas. Então esse tipo de existência tem como efeito objetivar ou formalizar os objetos, subjetivar os modos ou substancializar os modos, e organizar as funções. Então a lógica que vai sair daí é a lógica que o ocidente inteiro acompanha até hoje: quando você vai definir alguma coisa você dá a forma da coisa; quando você vai definir um sujeito, um modo, você dá a substância do sujeito ou a forma imanente ao sujeito; e quando você vai incluir o sujeito ou o objeto no tempo, você dá o desenvolvimento das formas ou o desdobramento da subjetividade humana; e quando você vai ligar isso ao corpo, você diz que o corpo é órgão e função de órgão – você reduz o corpo a um organismo funcional, um substrato organizado a partir do rebatimento dessas formas objetivas.

Então o que esse elemento intermediário nos dá, sempre, no fundo é o que chamamos de palavras de ordem, ou comandos, ou signos imperativos. Quando você se relaciona com uma forma exterior ou com um sujeito interior, você segue determinações ou comandos que vêm de fora, você toma todo o saber, todo o signo, como uma lei, como um imperativo, como uma palavra de ordem, porque você, ao fugir dessa organização, você fatalmente acaba recebendo a punição devida; no mínimo você é atormentado a um ponto tal que você se torna um ser absolutamente medroso, covarde diante do acaso, e prefira seguir esses signos imperceptíveis que te ordenariam a vida e o inconsciente, que te salvariam da loucura, do delírio, do risco das experimentações e te poriam a salvo na segurança dessa ordem formal de signos. Então eu acho que a virada espinosista essencialmente se dá aí: Espinosa quer libertar o homem, quer libertar a natureza dessa falsificação, dessa tela, desse muro representativo que se interpõe entre a vida e a natureza. É isso que ele quer fazer.
Então a esse plano transcendente de organização – ou de formalização ou de desenvolvimento de formas, de organização de funções, etc. – ele substitui um plano que não mais é um intermediário, não é um plano como um projeto, não é um plano como uma tela onde haveria um rebatimento, não tem rebatimento; você atravessa diretamente a tela. A tela é como se fosse o meio mínimo onde as coisas acontecem; não é um princípio de organização de realidade, não é um objetivo finalista de organização de realidade, mas é o meio onde tudo se compõe. Então os corpos, os indivíduos, as ideias ou as almas estariam diretamente ligados nesse meio; o meio não é um intermediário, ele faz parte da própria composição, é constituinte dela. Na medida em que ele faz parte da própria composição, ele deixa de ser captado abstratamente como puro plano de imanência em si, para tornar-se ou ser apreendido como um plano adjacente e em pressuposição recíproca com o plano de composição.

Ele é o próprio estofo onde se dá a composição. Como a placenta e o embrião.

Mas ele não se interpõe como um organizador, como um formalizador ou como um juiz que diria como a composição deve ser feita. É por isso que Espinosa não vai usar a palavra lei e vai usar verdades eternas; seriam para Espinosa como que os atributos da natureza ou as noções comuns, aquilo que é comum numa relação; mesmo que seja apenas entre dois corpos. Mas pode ser aquilo que é comum entre todos os corpos; aí ele vai atingir o que ele chama, por exemplo, de atributo Extensão; o atributo Extensão é a forma expressiva, ou o meio expressivo através do qual a substância ou Deus é corpo, é inteiramente corpo. Então o corpo teria uma dimensão infinita nesse meio atributivo que é a Extensão. A Extensão seria o meio comum ao corpo, assim como o atributo Pensamento é o meio comum a todas as ideias, à infinidade de ideias. Então haveria essa amplitude máxima que atinge o atributo, e haveria esse mínimo, esse limiar mínimo, que é a relação entre duas ideias ou entre dois corpos. No mínimo dois elementos.

Então o que é fundamental é que essa verdade eterna é o próprio meio, não é uma forma como uma lei, não é um imperativo, não é uma ordem ou um comando da natureza; mas é uma ordem de composição de relações, e uma ordem de composição de potências. Então essa ordem, que não é uma ordem de organização, que não é uma ordem de formalização, que não é uma ordem legal, que não é uma ordem judiciária, que não é uma ordem moral, que não é uma ordem teleológica, que é uma ordem de composição de relações e de composição de potências, é o que Espinosa chama de ordem das causas, e é essa ordem que vai ser o objeto do entendimento ou do segundo gênero de conhecimento. O segundo gênero de conhecimento conhece as noções comuns, ele conhece o meio. E vai a um ponto tal que, no meio, salta o singular; no meio saltam as intensidades; no meio saltam os modos ou as modificações puras, as puras intensidades.

Então você vai ter um plano de imanência, que vai ser esse meio, com essas intensidades que pululam e se encontram, e se compõem. Essas intensidades são potências e são relações; elas sempre têm uma relação própria, singular, uma relação que subsome as suas partes – mas essas partes são sempre partes intensivas, no sentido do que vamos falar nas próximas aulas em relação a Leibniz, por exemplo. Essa parte não é uma divisão ao infinito da matéria, um infinito numérico, digamos assim, mas ela é mais como uma dobra de tempo da própria matéria, é um fluxo que se dobra. E você tem uma infinidade de subdivisões, mas sempre essa subdivisão é inteira, ela dá uma unidade, ela é uma subdivisão formal, mas não numérica, ela tem sempre uma qualidade expressiva. É aquela questão da distinção formal, uma questão difícil essa. Mas segue aquele exemplo do planeta Vênus: o planeta Vênus é o ser, digamos assim; Estrela da Manhã é um modo de apresentação desse ser, é uma maneira do ser se expressar; Estrela da Tarde é outra maneira do ser se expressar. Mas Estrela da Tarde e Estrela da Manhã não formam dois seres; formam duas qualidades expressivas, mas o ser é o mesmo. É a mesma coisa nessa subdivisão ao infinito: você tem a subdivisão nas expressões, mas ela nunca é numérica, ela não é extensiva, ela é sempre na intensidade. Então você sempre tem uma qualidade intensiva, mesmo que seja mínima, mesmo que você vá ao infinito do infinitamente pequeno; mas é na intensidade. É por isso que você sempre atinge o plano de imanência, você não chega no zero, você não chega no nada, você não chega numa inconsistência do ser – sempre há uma consistência mínima de matéria.

Então Espinosa diz: uma relação singular que subsome a essência, ao se compor com outra essência, ela se compõe no plano das relações; ou seja, a relação que subsome a essência se compõe com a relação que subsome a outra essência, e também ela se compõe do ponto de vista da própria potência. Então haveria composição de potências e de relações. O que é o plano de composição, esse meio de composição? É a própria relação entre uma relação singular e outra relação singular; é a própria relação entre uma potência e outra potência. É isso que é esse meio. Então isso seria a fonte da noção comum, isso é a própria noção comum. Então não é uma coisa teórica, não é nada teórico como se fosse uma noção abstrata de consciência; é teórico na medida em que é pensamento puro, mas é um pensamento como ontologia – é o próprio ser que funciona assim. Então há uma intuição plena de Espinosa do modo como o real funciona, diretamente, sem mediação, sem autoridade, sem intermediário. Você entra direto nesse plano, nesse meio.

Então encontrar Espinosa ou encontrar o que Espinosa nos quer mostrar, é atingir esse plano de imanência e de composição. Esse é todo o nosso problema. E o que você encontra, a partir da ética – que vai ser opor à moral -, a partir de um entendimento – que vai se opor à razão metafísica, à razão representativa -, a partir de uma substância – que vai se opor a Deus como um ser que seria um ser pessoal, antropomórfico e antropológico, ou seja, uma entidade moral, no fundo? Você vai ter então uma série de diferenças sob esses vários pontos de vista – o ponto de vista ético, o ponto de vista do entendimento, o ponto de vista da substância ou ontológico.

Como a coisa se dá? Um corpo, diz Espinosa, não pode ser definido por uma forma, não pode ser definido por uma substância e nem pode ser reduzido a órgão ou função de órgão. Um corpo, diz ele, é definido por um conjunto de relações entre partículas mais ou menos velozes; ou seja, um corpo é constituído por uma pluralidade, por uma diversidade de partículas que se relacionam com velocidade e lentidão, movimento e repouso. O corpo é isso. A natureza do corpo é feita de uma pluralidade de relações entre partículas ou intensidades mais ou menos velozes; e esse mais ou menos velozes, esse movimento e esse repouso, que definem o corpo, têm limiares: limiar extremo, máximo e mínimo. Esses limiares extremos remetem a uma outra expressão ou uma outra definição do corpo: o corpo pode. O que pode o corpo? Então o corpo tem uma potência ou um poder ou uma capacidade de ser modificado ou afetado, assim como tem uma capacidade de modificar ou afetar. Então esse seria o segundo aspecto ou a outra maneira de definir o corpo: o corpo é definido por um conjunto de relações entre partículas ou intensidades que operam por velocidades e lentidões, acelerações e retardamentos, movimento e repouso, dentro de certos limiares mínimo e máximo, que remete a outra expressão do corpo ou a outra definição do corpo que seria o que ele pode nesses limiares mínimo e máximo.
Aqui vai começar a pegar a questão do que seria o livre arbítrio e a liberdade, porque o que ele pode vai variar, mas, ao mesmo tempo, ele tem uma potência que não varia. Então o que varia e o que não varia? Tem algo na existência que varia, mas algo na essência que é invariável, que não muda; é uma quantidade de energia dada. Mas o que você faz com essa quantidade de energia dada? Aí entra o problema ético, a questão da seleção, da organização dos afetos.

Participante: mas o corpo, para mim, ainda está num grau de abstração que eu ouvi, ouvi, ouvi em relação das partículas, velocidades e limiares para mim está impossível. Estou abismada que esteja todo mundo quieto. É um conjunto de relações entre partículas que são intensidades – e para dizer a verdade eu não sei o que são intensidades, é abstrato para mim o que é intensidade, também. Com velocidades e lentidões – o que é difícil para eu pensar porque eu não consigo pensar intensidade com velocidade.

Vamos dar um exemplo simples: respirar. Até onde eu aguento ficar sem respirar, na imobilidade? É um repouso da minha respiração. Eu tenho um limite e eu posso respirar numa velocidade máxima também. São relações de velocidade e lentidão entre partículas que não só estão em você, mas estão fora de você, você está mergulhado no si mesmo.

Participante: já é relação entre corpo e extra corpo.

Exatamente. Eu vou chegar num nível de distinção entre a questão do que é útil para o corpo, que é a questão imediata do bom e do mal, do alimento e do veneno; vamos chegar à questão da seleção e depois vamos chegar à questão da sociabilidade ou da comunidade, que já leva para o lado da simbiose. Eu preciso atingir esse nível de abstração porque estamos no pensamento puro mesmo, das formas puras, porque se eu for começar a jogar figura e imagem, eu acho que começa a reduzir e eu não sei se é uma boa ideia. Pode até ser que seja, mas vamos tentar um pouco mais.

Se quiser, eu dou até mais alguns exemplos de corpo. Por exemplo, o sangue com o oxigênio no sangue. Vamos inventar exemplos aí.

Participante: acho que mesmo uma pedra ou um rochedo é uma coisa que parece dura.

Se você pensar numa linha do tempo… eu acho que um corpo, que a vida é sempre algo em movimento nesse sentido. Para mim é mais fácil pensar assim.

Participante: mas quando ele dá o exemplo da respiração, é fácil pensar “um órgão com o oxigênio”. Só que não é disso que você está falando, você está falando de uma intensidade com outra intensidade.

Mas aí você pensou órgão como sendo uma relação que subsome uma pluralidade de partes;

Os meus pulmões subsomem uma pluralidade de partes, é um tecido.

Participante: perfeito. O que é difícil para mim é quando você fala em intensidade.

Participante: tudo que acontece está originalmente relacionado a uma primeira intensidade.
Sobre a intensidade nós temos múltiplas formas, nós vamos falar até o final do curso de intensidade. Com Leibniz na aula que vem nós vamos chegar à questão de dobra: a dobra vai substituir uma noção tradicional de parte ou de substituição das partes; e a dobra traz, claramente, a ideia de tempo. Mas vamos falar dessa ideia de tempo em Espinosa – porque intensidade, sem o tempo, você não pensa. O que é a extensão? A extensão tem uma diferença de natureza em relação à intensão ou intensidade; a intensidade é algo complexo, cheio de realidades, que você não sabe o que tem lá, mas que se expressa; na medida em que faz os encontros, vai se desenvolvendo e aparecendo, então ela vai se desenvolvendo, vai se estendendo. Então a extensão é uma noção espacial. Mas como ela se estende? No tempo. Então existe um tempo intenso, comprimido – a intensidade é isso, é um tempo comprimido, é a matéria espiritualizada, é a matéria no tempo.

Participante: seria energia?

A energia já é a atualização. Não é energia.

Participante: energia é extensão?

Energia já está na extensão. A intensidade é anterior à energia; é o tempo condensado, é o tempo dobrado; é uma invaginarão de matéria. Será que dá para entender? É uma curvatura da matéria. Existe um fluxo e ele nunca tem uma linha absolutamente reta, ele sempre se curva, ele se dobra de alguma maneira; nessa mínima curvatura dele, ele abocanha um tempo.

Participante: você está trazendo umas coisas que a astrofísica mostra.

Você pode usar a física quântica, a astrofísica.

Participante: tudo isso parece que está remetendo à formação das galáxias.

Inclusive. A natureza funciona do mesmo jeito em qualquer plano. Nas galáxias ou aqui na minha respiração. A ordem é a mesma.

É isso que Espinosa diz: o plano de imanência da natureza é um só; e, no entanto, ele é diverso em cada composto. É esse o nosso problema. Porque o plano de imanência tem que ser fabricado, ele não está dado. Este é o segredo – se existe algum segredo.

Você tem que fabricar o seu corpo sem órgãos, o seu plano de imanência; você tem que fazê-lo, tem que construir. Aí é que entra o problema da liberdade, da necessidade e do livre arbítrio; porque na medida em que você vai fazendo o seu corpo sem órgãos, o seu plano de imanência, é como se você estivesse esculpindo numa matéria amorfa os canais por onde a tua intensidade vai no limite do que ela pode. Cada vez que você faz isso, você aumenta a tua potência; e quanto mais você aumenta a sua potência, mais você determina a tua auto efetuação e mais você envolve matérias, dobra matérias e amplia o seu ser ou seu passado; mais você dobra tempos, mais você cria intensidades, mais eterno você é. É tudo na relação, é tudo na superfície, é tudo no encontro que se dá; só que no encontro você tem que estar presente, você tem que estar no instante, você tem que estar no atual, você tem que estar no próprio acontecimento enquanto acontecimento. É aí que você constrói seu corpo sem órgãos ou seu plano de imanência.

Participante: essa parte ética parece mais fácil.

E é. É só se entregar um pouco mais, nós não nos entregamos, nós acreditamos que quanto mais comandamos com a nossa consciência, mais temos domínio da situação. Mero engano: aí mais precisamos de arrogância, mais precisamos de reconhecimento, mais precisamos de um cargo, de um poder, de alguma referência externa. E quanto mais nos entregamos, na realidade mais poderosos ficamos e menos reconhecimento precisamos.

Participante: porque gera consistência.

Gera consistência. Aí você está na imanência. É isso que Espinosa quer mostrar: tem um jeito, a natureza tem esse jeito, ela funciona assim – seja no plano da astrofísica ou da física quântica, não importa em que nível você entra. Em todos os níveis dela, ela funciona do mesmo jeito, é sempre um plano de composição. É esse plano que precisamos encontrar – puro, sem mediação. A mediação é sempre uma ilusão de consciência. Vamos voltar um pouquinho para as nossas abstrações, depois voltamos para os exemplos. Eu acho que vamos chegar, estou otimista.

Participante: você fala “intensidades”, no plural. Elas têm diferenças específicas, então.

O plural é sempre na expressão.

Participante: a expressão já é na extensão. Quando você fala “intensidades”, o que diferencia uma da outra?
É e não é. Tem dois campos de expressão: tem o campo de expressão na essência e tem o campo de expressão na existência. Espinosa diz: a essência é. E, no entanto, a essência pode não existir, mas ela é. É isso que é dizer que o virtual é real, mas não existe. E a intensidade, no fundo, é isso: a intensidade não tem a existência: a existência da intensidade já é a energia que se efetua.

Participante: aí já é expressão, que é na extensão. Então por que falamos que são intensidades diferentes? Que diferença é essa?

São tempos dobrados, e o tempo que envolve a matéria. É matéria e tempo, são sempre essas duas coisas. É física quântica pura.

Participante: está bom, mas por que diferentes? Por que muitas intensidades, se ainda não tem desdobramento que faça a diferença?

Eu vou responder com Espinosa: a substância é absolutamente infinita. Por que? Porque ela é constituída por infinitos atributos infinitos. Então a infinidade de atributos nela é que dá o absoluto dela; é absoluta, abarca tudo. E esse tudo não é nem na extensão e nem no tempo, ele é o absoluto, ele abarca tudo. Então eu tenho o atributo Pensamento, eu tenho o atributo Extensão, eu tenho a infinidade de atributos que podem existir na natureza que constitui atualmente e realmente essa substância divina, digamos assim, em Espinosa. Substância divina ou natureza naturante.

Um atributo apenas – que é, por exemplo, o atributo Pensamento, ou o atributo Extensão, que é o do corpo – já é infinito; se ele é infinito, ele é infinito porque ele é passível e agível de infinitas modificações; ele é uma variação infinita. E essa variação infinita vai em todos os níveis do ser. Então se eu for espacialmente no micro, eu nunca vou atingir o fim; e se eu for no macro, eu nunca vou atingir o fim. Mas isso são imagens; é por isso que eu não gosto de dar exemplo na imagem: a imagem ainda é espacializada. Na imagem você chega a um absurdo e a partir daí não concebemos mais; e o pensamento chega, o pensamento não precisa de imagem, o pensamento entende o que é.

Então essa subdivisão nunca vai atingir o fim. É como o acontecimento estoico: você pega o acontecimento, o instante, e vai subdividindo; quanto mais você subdivide, mais você multiplica as modificações. Então ele é uma capacidade de modificação infinita. É por isso que é plural; é plural, só que não é o plural numérico, porque é o número que interessa. Ainda que se expresse espacialmente e na extensão com um número, mas ele não se reduz a um número, ele é muito mais. Aliás, o número só é possível porque ele está além do número ou aquém do número, ele ultrapassa infinitamente a extensão numérica.

A questão é sairmos do tempo cronológico. Quando você sai do tempo cronológico e entra na subdivisão do instante – como falam os estoicos – você atinge o tempo intenso; e quando você atinge o tempo intenso, você sabe também que necessariamente ele envolve cada corpo. Uma subdivisão já é uma expressão plena do ser. Estrela da Manhã é uma subdivisão – ainda que seja marco, visível, etc.; é um encontro, é uma expressão do ser no encontro com os meus olhos e com a luz do sol e com Terra e com essa disposição, com esse arranjo de planetas. Então essa expressão é única; não é que é uma subdivisão que subtrai ao ser; ela expressa todo o ser que é Vênus e todo esse arranjo, ela é plena nisso. Então a questão não é porque ela está em escala planetária ou em escala atômica; sempre funciona assim, uma expressão que envolve uma intensidade. No caso o planeta Vênus é um conjunto de intensidades.

Você pode até dizer uma intensidade; a questão de se é uma ou se é várias não importa; no caso de Vênus, se você se remete ao ser, você pode dizer é singular – mas o singular não é nem particular nem universal, não é nem individual nem coletivo. O singular não é isso. O singular é aquém e além dessas divisões. “Animalidade”, por exemplo: animalidade é singular e, no entanto, tem uma pluralidade de animais, inclusive nós; agora, a animalidade enquanto animalidade, a humanidade enquanto humanidade, é uma singularidade. Não é nem universal nem particular, não se reduz nem a este homem nem ao conjunto de homens existentes; é uma potência da natureza em se efetuar numa forma humanidade. Então a questão é que nós estamos habituados a pensar por formas, por desenvolvimento de formas, por sujeitos, por substâncias, por órgãos e por funções de órgãos; a dificuldade é essa. É muito tempo recebendo a mesma massa de informações. Então estamos muito estriados, muito codificados; é difícil você pensar livremente numa singularidade que envolve sempre uma intensidade e essa intensidade complica uma série infinita de tempos ao mesmo tempo que é uma série infinita de elementos materiais ou sub-elementos (e esse sub já é uma imagem) intensivos que compõem aquele arranjo de corpo.

Então os medievais inventaram uma noção chamada complicatio; na realidade a intensidade é uma complicatio: ela complica intensamente uma pluralidade de realidades, de tempos e de matérias; e nos encontros que essa entidade faz ela vai desdobrando ou estendendo ou expressando essas virtualidades que ela tem nela mesma. É por isso que não é um campo de possibilidade, porque o campo de possibilidade seria um conjunto de formas possíveis; eu já saberia a priori, através de uma memória que eu projetaria no futuro, o que pode ser o meu corpo ou meu pensamento. No caso de Espinosa eu não sei o que pode o corpo e nem o que pode o pensamento, porque é um conjunto de intensidades. A intensidade você não sabe a priori.

Participante: nem momentaneamente? Nem nesse corte que você deu?

Na efetuação, sabe; na experimentação. Agora, aí que entra a sacada do pensamento, porque se você atinge o meio puro de composição, você antecipa; e você rompe, em segurança da abolição (que você vai morrer ali porque você não sabe o que pode acontecer). Você sabe que ali necessariamente vai haver composição. Quando você apreende o puro atributo, o puro meio, onde a coisa é comum.

Participante: me parece um tipo de concentração ou da consciência ou da intelecção numa fatia; não se preocupar nem com o micro nem com o macro e ficar naquele momento zen ali.

É isso. Aí você tem que habitar uma potência que é anterior à expressão do corpo e do pensamento, que é a tua essência. Essa potência vive nos dois ao mesmo tempo. E isso também responde à questão sobre o livre arbítrio porque se diz “ora o pensamento determina o corpo, ora é o corpo…”. A questão é a seguinte: não é um ou outro, ou você ser causa de um ou ser causa de outro; a questão é você habitar esse elemento que é ao mesmo anterior e posterior, ele está dentro e fora, e que atravessa as duas formas de expressão ao mesmo tempo – a forma na Extensão ou no corpo e a forma no pensamento. Ao mesmo tempo. Aí você atinge a natureza naturante, o absoluto. O que é o absoluto? É você viver simultaneamente as tuas faculdades ou as tuas capacidades expressivas.

Então simultaneamente a coisa acontece no meu corpo e no meu pensamento, não tem mais aquela esquizofrenia de ora um, ora outro, essa divisão, essa dicotomia que a consciência fabrica. Você sai da consciência, você cria uma outra consciência.

Participante: o que quer dizer “o pensamento ativa o corpo”, ou “o corpo arranca o pensamento de uma coisa sedentária”? Aí dá a impressão de que eles não estão juntos, que não são duas expressões, mas um vai e arranca o outro? Quer dizer, ele estava em outro lugar?

Sempre relação de velocidade e lentidão, limiares mínimos e máximos. Às vezes o corpo entra em desaceleração; ou o pensamento: as ideias funcionam do mesmo modo, as ideias têm velocidades e lentidões. E o corpo também: é feito de partículas com velocidades e lentidões. E essas velocidades e lentidões têm limiares subsumidos pela relação. A relação, que é uma forma expressiva, que é um acontecimento puro, que é uma essência, suporta limites que são preenchidos sempre.

Essa potência de afetar e ser afetado, esse poder que é sempre necessariamente preenchido, é ora preenchido com algo que me decompõe, que tira parte das minhas partes constitutivas subsumidas naquela relação, e ora compõe. Quando eu sou preenchido por algo que me decompõe, eu perco a minha potência e eu me desacelero – no corpo e no pensamento. Ora mais pelo corpo, ora mais pelo pensamento; eles não correm necessariamente termo a termo, não há um paralelismo termo a termo entre ideias e corpo – ainda que o que aconteça no campo da extensão acontece no campo do pensamento, necessariamente. A ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão dos corpos – diz Espinosa na proposição VII do livro II da Ética. Essa proposição é famosíssima. Mas ele diz o seguinte: é a ordem e a conexão que é a mesma; é a ordem e a conexão das ideias que é a mesma que a ordem e a conexão dos corpos, mas não é a ordem do corpo em relação à ideia e da ideia em relação ao corpo; e nem a conexão do corpo em relação à ideia e a conexão da ideia em relação ao corpo. É a ordem do corpo em relação ao corpo, é a conexão do corpo com o corpo, que é a mesma que a ordem de uma ideia com uma ideia ou a conexão de uma ideia com outra ideia. É isso que é o mesmo. Mas não é a ordem da ideia em relação ao corpo ou a conexão da ideia em relação ao corpo ou vice-versa.

Aí vai haver um desequilíbrio das séries: ora o pensamento está mais desterritorializado ou, digamos assim, mais nômade ou mais numa superfície lisa ou mais num puro plano de imanência ou de composição, ora o corpo. E, nesse sentido, existe um jogo lúdico da vida. Mas não significa que um domina o outro; significa que um pode estimular e acelerar o outro. É isso que ocorre. Mas é uma ocasião, não é uma causa. É uma oportunidade. É como que uma excitação: você instiga, você excita, você chama, você seduz, mas você não causa. É isso que o corpo e o pensamento fazem um com o outro. É uma relação de atração e repulsão, de sedução. É ocasional.

Vamos dar exemplos práticos, acho que aí acabamos atingindo mais rapidamente certas noções. A etologia é uma ciência do nosso século, inventada por Lorenz, por Uexküll e alguns outros mais. Uexküll é um dos principais inventores da etologia. A etologia pensa o que podem os corpos, ela pensa o que podem os animais, ela pensa o que podem os homens. Foi dado até um nome específico no caso humano, que seria proxêmica – mas hoje em dia nem é mais muito usado, geralmente se usa etologia. A etologia, de modo vulgar, seria a ciência que estuda o comportamento; mas de um modo bem vulgar – que comportamento é esse? No fundo é o modo de ser e o mundo próprio de cada ser; então ela define mundos próprios.

Segundo a etologia, podemos chegar à conclusão que o homem é o que menos tem mundo próprio, o homem tem um mundo comum, um mundo ordinário, um mundo do bom senso e do senso comum, mas mundo próprio. Geralmente o seu mundo próprio é desqualificado como um mundinho, como assunto privado, como um segredo, como isso e como aquilo. Ou seja, ele não cria territórios próprios, ele não cria atmosfera própria, ele não cria sua forma expressiva própria. Ele não cria a sua forma expressiva própria porque ele está atrelado às formas genéricas, às formas gerais; ele está atrelado a um plano que intermedia as coisas, a um plano de organização; ele não está diretamente ligado ao plano de composição.

Qualquer animal está ligado ao plano de composição; o homem não, o homem criou uma representação para si que interrompe essa relação direta com a natureza. Então segundo Uexküll, o carrapato é uma modalidade ou modo de ser que tem algumas capacidades afetivas, ele tem uma potência de ser afetado, ele tem um poder de ser afetado. Segundo Uexküll, numa obra chamada Dos animais e dos homens, o carrapato tem, basicamente, três afetos ou três expressões. Um afeto de luz ou de luminosidade que faz com que ele trepe no galho de uma árvore; um afeto olfativo: quando ele sente o cheiro de um mamífero que passa sob o galho ele se apodera, ele cai em cima do mamífero; e o terceiro afeto seria um afeto de calor, um afeto táctil: ele procura uma região sem pelos e, sob a pele, suga o máximo de sangue que ele pode. Estoura e morre, faz o seu repasto da morte; ele atinge o limiar máximo dele. Aqui você tem os dois ao mesmo tempo, o limiar máximo de velocidade e lentidão – no caso, de velocidade; a lentidão é quando ele fica em jejum por anos ali, esperando um mamífero. Às vezes não passa o mamífero, ele tem uma resistência incrível, ele fica lá imóvel – isso é o seu limiar mínimo, digamos assim; é a sua lentidão máxima, o seu limiar mínimo. E a sua velocidade máxima é quando ele suga o máximo de sangue que ele pode. Então você tem o exemplo das partículas em velocidade e lentidão e você tem a capacidade de afetar e ser afetado segundo essas três formas expressivas.
Outro exemplo: Espinosa ou os etólogos definem os seres, os indivíduos, os corpos, muito mais sempre pela capacidade de afetar e ser afetado ou pelas velocidades e lentidões que essas partículas suportam, do que por formas, do que por funções, do que por órgãos, do que por espécies, do que por gêneros. Exemplo: é possível que um boi se aparente muito mais com um cavalo, do que outro cavalo com esse cavalo; você tem o cavalo de carga ou de tração ou de trabalho, que tem que ter algumas virtudes, capacidades: levar muito peso, arrastar esse peso, andar numa linha reta, ter viseiras, enfim, existe lá uma pluralidade, você pode fazer a lista dos afetos que ele tem para exercer essa função de animal de carga. O boi, a mesma coisa: você pode pôr um boi num arado, por exemplo, o boi pode arrastar um monte de coisas e ele pode também carregar um monte de coisas. Então nesse sentido o boi e o cavalo de carga ou de tração se assemelham muito mais do que o cavalo de corrida, que tem que ter afetos absolutamente distintos.

O que importa para esse tipo de visão, para essa maneira de ver o mundo e a natureza, não é definir o indivíduo segundo o seu gênero, segundo a sua espécie, segundo a sua classe; isso seria uma classificação, seria um modo de sedentarizar e de dizer o que aquele animal, o que aquele indivíduo, o que aquele corpo deve cumprir como seu destino, uma classificação formal de fora. Quando você vai no que pode o corpo, tanto do ponto de vista dos limiares máximo e mínimo das partículas intensivas do corpo ou das potências de afetar e ser afetado, você define o indivíduo de dentro – ou melhor, não é você que define o indivíduo, é a própria força ou potência que expressa o limiar máximo e mínimo e a capacidade de modificar e ser modificado; é ela que dá o limite do indivíduo, é ela que dá a definição do indivíduo. A definição é uma coisa física, não é nem teórica; ela é teórica no sentido do pensamento enquanto pensamento puro mesmo, que atinge isso direto, que atinge a realidade – nesse sentido não é o teórico-abstrato, mas é o pensamento; e ela ao mesmo tempo é uma expressão imediatamente física – física, química, biológica, vital, carnal, visceral. Ela é o que é. Então o indivíduo se auto define.

O que ocorre geralmente com os homens? Os homens são reduzidos a limiares medianos de velocidade e lentidão; e a capacidade de afetar e ser afetado tem que estar submetida ou reduzida a uma forma moral ou racional ou utilitária – segundo valores capitalistas, segundo valores familiares, segundo valores religiosos, segundo valores jurídicos, segundo valores nacionais, etc.

Participante: ou seja, nós temos que chegar nos extremos dessas formas.

Estamos sempre nas formas médias, nos meios-quereres, meios-prazeres, meios-tudo. E quando se vive pela metade, você se cola no efeito, no plano de organização. É o que fala Artaud: é o cu de rato morto pendurado no teto do céu. Você pendura o seu destino nesse teto morto, nessa teia de aranha vingativa, como falaria Nietzsche. Ou seja, você reduz a sua vida inteira a esse efeito. E esse efeito é uma forma mediana.

Participante: segura a broxa que vão arrancar a escada.

A questão é engraxar bem, ensebar bem. Mas o tombo, na realidade, que se imagina, não é na vertical, ele é um ladear, ele é na lateral; quando você cai ilusoriamente na consciência ou na moral, você se desorganiza absolutamente porque você não encontra o plano de imanência, você se afunda; aí a questão da psicose, da neurose, das patologias que fazem com que você perca definitivamente a autonomia. Mas quando você encontra o plano de imanência ou de composição, não é você que cai, você emerge na superfície; e essa teia de aranha, esse céu ou esse plano transcendente de organização é que cai na superfície e aquelas formas viram linhas. Então essa é que é a questão, é fazer a coisa cair e não você cair. Você emerge, você sobe. Essa é a virada ética, essa é a postura ética: é ligar a existência a um modo imanente de ser. Aí que entra o problema de organização dos encontros e dos afetos.

Um corpo, uma ideia ou um ser, um modo – que não é substância, que não é sujeito, que não tem obrigação em relação a uma forma, a uma causa final ou a uma finalidade, que não se reduz a seus órgãos, que não reduz os seus órgãos às funções dos órgãos – é sempre um limiar mínimo e máximo e uma potência de afetar e ser afetado. Há duas noções que Deleuze resgata, que são medievais, chamadas latitude e longitude; noções geográficas, também. Essas noções, Deleuze usa para dizer como se define um corpo, ou como se faz uma cartografia do desejo. O corpo é definido segundo a sua longitude, na medida em que ele encontra os seus limiares extremos de velocidade e de lentidão; então ele alonga o máximo as suas relações entre partículas intensas segundo a relação que subsome essas partículas suporta. Isso seria a longitude de um corpo, a longitude de uma alma, a longitude de um modo. A longitude, então, é aquilo que se alonga ao máximo na extensão, que vai ao extremo do que pode na extensão. A latitude é como que a amplitude das potências de afetar e ser afetado; você tem uma capacidade de ser afetado, um limiar máximo e mínimo e em relação ao afeto no outro. Todo corpo, então, tem uma latitude e uma longitude.

A latitude e a longitude são sempre expressões da potência plena na medida em que ela é necessariamente preenchida, em qualquer hipótese. A potência, vimos em Espinosa, é o conatus ou é o desejo ou é um grau, uma parte do ser, uma parte da substância, uma parte da natureza naturante que tem como contraponto uma capacidade de afetar e ser afetado. Então essa capacidade de afetar e ser afetado é necessariamente preenchida. A capacidade de afetar e ser afetado faz com que aumente ou diminua a minha potência de agir e de existir; essa que é a variação essencial. Se eu sou preenchido por um corpo ou uma ideia que decompõe as minhas partes, ou alguma das minhas partes, sob a minha relação característica, é sinal que uma parte que estava sob a minha relação é apropriada por outro corpo ou outra ideia que está sob uma outra relação. A minha parte passa para uma outra parte e a minha potência diminui; eu me decomponho e posso chegar até o limite da morte; às vezes é uma coisa apenas parcial. Isso se dá em vários níveis: nível social, nível econômico, nível físico, nível psíquico – todos os planos possíveis da natureza até o limite da dissolução ou da morte.

A morte é quando você não tem já mais o mínimo de relações entre partículas que mantém a sua relação singular subsumindo aquelas partículas; ou seja, quando aquelas partículas se compõem com outros corpos, outras relações, a minha relação desencarna, desincorpora, ela fica no puro plano virtual novamente. Ainda que ela seja uma verdade eterna, mas ela se desatualiza, ela perde a existência – é isso que ocorre com ela.

Portanto, se um outro corpo subtrai algumas partes do meu corpo e diminui a minha potência de agir, apesar de o meu poder de ser afetado ser inteiramente preenchido, ao meu desejo não faltar absolutamente nada e a minha energia estar inteiramente ali, eu sou menos real. Isso é um paradoxo: eu sou menos real como, se a minha energia está inteira ali? Eu sou menos real porque aquela minha intensidade não consegue desenvolver tudo que ela pode, eu a achatei ao máximo; e ao subtrair partes ou ao ser decomposto por outros corpos em certas partes do meu corpo, eu diminuí ainda mais a oportunidade de expandir ou de levar a minha longitude ao máximo do que ela pode.

Logo, se a minha potência de agir, de existir e de pensar diminui, a expressão do meu desejo, do meu conatus ou da minha potência é uma expressão imediata – não é que alguém vem e diz ou alguém vem e sente que estou triste – de tristeza. A minha expressão inteira é triste. É uma relação direta, não tem representação, não tem mediação. Se eu fico triste ou impotente ou diminuo a minha potência de existir, de agir e de pensar, eu também não consigo receber ou encontrar outras realidades; eu me fecho para outras realidades. Quanto mais a minha potência diminui, menos eu posso ser afetado por outros corpos. Na medida em que diminui a minha potência de afetar, eu posso chegar a um limite tal em que eu fique inteiramente paralisado, imobilizado – até o limite do suicídio.

O caso contrário é a questão do fortalecimento: se, ao invés de eu encontrar um corpo que me decompõe, eu encontro um corpo que me compõe, o que se passa? Aquela minha relação que subsome as minhas partes se compõe com a outra relação que subsome as outras partes daquele ser e eu formo uma terceira relação.

Participante: então quando você compõe com uma outra relação, você não está necessariamente decompondo o outro ser da relação.

Não. Você até pode decompor. Exemplo: uma maçã – ao comer a maçã eu decomponho a maçã, mas as partes da maçã vão se compor com as partes do meu sangue, das minhas células.

Participante: um pensamento: você usa essas ideias para se compor sem destruir ou sem prejudicar.

Ou então ao contrário: você pega uma ideia de um outro pensador, de uma outra obra, você se apropria dela, modifica e a põe sob uma outra relação, você cria um outro conceito com ela, você pode fazer isso também. Agora, do ponto de vista de uma composição, você aumentou a tua potência na medida em que a extensão ou a longitude do teu ser agora abarca também a longitude do outro ser. Há uma comunidade de longitude aí. E a mesma coisa de amplitude ou de latitude: você aumenta a potência de afetar e ser afetado na medida em que você já está em relação com o outro e a potência do outro também se compõe com a tua. Então a capacidade dele de afetar e ser afetado também já faz parte da sua. E aí você forma um outro indivíduo. A natureza inteira é assim, no fundo ela é um grande indivíduo com uma capacidade de variação infinita. Se você pega o nosso corpo, por exemplo, e vai subdividindo, você atinge células, moléculas, átomos e você vê sempre o mesmo fenômeno, sempre o mesmo acontecimento – relações que subsomem partes intensivas em direção ao infinitamente micro ou infinitamente macro; quer dizer, você vai ampliando ou subdividindo, mas são sempre indivíduos que se compõem e cada indivíduo é um composto que subsome partes e essas partes podem ser apropriadas por um outro ser sempre. Então você tem sempre esse tipo de relação.

Participante: apropriação seria a subsunção?

Você subsome as partes. Vamos supor, eu como a maçã: eu subsumo as partes da maçã e as decomponho; elas vão fazer parte do meu ser, agora, sob a minha relação característica. Mas eu tenho uma relação que é dominante, que me faz indivíduo, mas eu tenho uma pluralidade de sub-relações; é por isso que um alimento sob um ponto de vista é alimento e sob outro ele pode ser um veneno, porque eu tenho uma pluralidade de partes e esse alimento também tem uma pluralidade de partes.

Participante: isso é o mais comum.

Isso é o mais comum. Efeitos colaterais, por exemplo.

Participante: por isso acho importante a seleção.

Participante: um não exclui o outro, você não seleciona exatamente um alimento ou coisas que você quer adquirir para você. Aí vem os efeitos colaterais ou você vai se separar daquelas coisas que vão brigar com esse tipo de veneno ou de alimento.
Exemplos, de novo: a planta. Todo ser tem um contraponto – ponto e contraponto, ponto e contraponto. A planta tem um contraponto que é a água, que é a luz, que são os minerais, etc. A aranha tem um contraponto que é a mosca, por exemplo: ela cria uma teia e ela captura a mosca; ela decodifica a expressão da mosca, captura a mosca e transforma a mosca em aranha na medida em que ela destrói as partes subsumidas pela relação da mosca e essas partes vão ser apropriadas pela relação singular da aranha. Até aqui estamos no exemplo da utilidade: os corpos têm o seu contraponto, eles são úteis.

Agora vamos atingir o nível da seleção: a seleção é necessária para aumentar a potência do meu corpo e do meu pensamento enquanto indivíduo, enquanto modo. Então eu só estou preocupado comigo, por enquanto – ou com o indivíduo, isoladamente (que não existe, é uma abstração). O que me compõe é sempre um alimento, o que me decompõe é sempre um veneno. Isso nós já explicamos bastante na aula passada, é a questão do Mal, acho que eu não vou me estender muito nesse aspecto. Isso seria uma outra dimensão da etologia, ou seja, eu crio um mundo próprio a partir da manutenção do meu ser; eu tenho um entorno que me banha, que eu seleciono, onde o fora vira o dentro e o dentro é uma projeção do fora. Então, no fundo, o dentro ou o interior – vamos aqui igualar – é o fora selecionado ou é o exterior selecionado; então eu já tenho necessariamente uma seleção aqui.
Mas até aqui eu domino, eu componho, eu decomponho com o único intuito de me manter no meu ser. Quando eu começo a expandir o meu ser? Aí entramos na relação de sociabilidade, de comunidade ou de simbiose, digamos assim. O que é uma simbiose? O que é uma relação de simbiose em biologia? É a aliança de um ser com um ser diferente, é a composição entre seres diferentes. Até aqui eu estava no ponto e contraponto, coisas que fazem bem ao meu ser, ao meu modo; mas agora eu entro em relação com outro ser, com outro modo diferente de mim. E para Espinosa o indivíduo humano é diferente do outro indivíduo humano.

Participante: são modos diferentes?

São modos diferentes. De indivíduo para indivíduo, de modo para modo, de carrapato para carrapato, de carrapato para humano, não importa. O indivíduo é sempre singular, ele tem uma singularidade própria; cada indivíduo tem uma singularidade própria – isso é fantástico em Espinosa, não tem universal. Universal é uma ficção, uma abstração, uma ilusão de consciência. Se os indivíduos são distintos, na medida em que eu componho o meu indivíduo, o meu corpo, com outro corpo ou com outro indivíduo, ou a minha alma com outra alma, eu entro num novo tipo de relação que não é mais uma relação de dominação ou de subjugação. E aí que Espinosa vai fazer uma diferença entre sociedade e comunidade de homens livres. A comunidade é sempre entre espíritos livres, homens livres ou seres livres; e a sociedade necessariamente traz uma subordinação, uma obediência, uma dominação. A sociedade é sempre moral; a comunidade, que é sempre de seres livres, é um aumento de potência. O que Espinosa quer? Espinosa sente o universo e o cosmos como uma música; mais do que como uma música, como uma sinfonia, que é uma música, mas é uma música que coordena ou faz coexistirem uma pluralidade de instrumentos, de vozes, de elementos com as dissonâncias, as suas ressonâncias, as suas variações infinitas, numa expressão simultânea; essa expressão simultânea seria a sinfonia. Ele vê o universo como uma sinfonia, ele vê o indivíduo como uma sinfonia, ele vê a composição entre indivíduos como uma sinfonia.
Então como criamos a sinfonia na nossa vida, nas nossas composições?

Participante: mas a sinfonia não está aí, já? Sem o livre arbítrio, como é que você vai criar uma sinfonia, como é que você vai selecionar alguma coisa se você não tem a capacidade…? Você tem que deixar fluir, não ir atrás.

Deixar fluir – precisa ver o que você quer dizer com deixar fluir. Deixar fluir ao acaso, você só vai flutuar e aí você vai ser preenchido, necessariamente, por tudo que vier. E geralmente o que vem vai te decompor.

Participante: vai atrapalhar a sinfonia.

Você não entra em sinfonia, você não entra nem na música, nem num oi, num ai, num ui – você simplesmente só geme.

Participante: a noção comum é fundamental, então.

A noção comum é fundamental. Agora, como é que você conquista? Você tocou no ponto fundamental: a noção comum é a chave de tudo, a chave está aí. Agora, como é que você atinge a noção comum? Aí é que não é simplesmente deixar fluir. Na composição, no encontro com algo que te compõe, necessariamente você é afetado de alegria – ou seja, aumenta a sua potência de existir, de resistir, de agir, de pensar; aumenta a sua potência disso tudo. Essa potência que aumenta é como se fosse um excedente que você ganhasse, ela como que duplica a sua potência; esse excedente é que é a própria inteligibilidade, é que é o próprio ser da noção comum. Não é o ser inteiro da relação, mas ele é a expressão, ele é a condição através da qual aquilo aconteceu, aquela relação aconteceu. Essa condição é a noção comum, essa condição é quando você encontra algo em comum entre dois seres. Esse algo em comum já é necessariamente o que Espinosa chama de ideia adequada; ideia adequada é a ideia que não está separada da sua causa, é um efeito que é explicado por sua causa, a causa se explica no efeito. E se explicar não é um eu que vai explicar, não é a minha consciência que vai ter a noção comum; é a própria expressão da relação, que vai se expressar agora em mim, através desse duplo de potência, dessa duplicação da potência. A duplicação é o duplo do acontecimento; esse duplo do acontecimento se expressa em mim; quando isso se expressa em mim eu tomo parte, eu tomo parte da natureza. Ao invés de ser uma parte ao acaso, eu tomo parte dela, eu sou uma parte ativa dela – porque isso já me dá a ação, isso já me devolve a ação. Toda ideia adequada desencadeia uma ação, ela produz uma ação. A ação é um afeto. O que é o afeto? É a passagem de uma realidade menor para uma maior ou vice-versa; no caso da ação, é sempre de uma menor para uma maior.

Então aqui é que eu começo a entrar em sinfonia. Ou seja, na medida em que eu tenho isso, eu tenho ao mesmo tempo a capacidade de não só me expandir no longitudinal, na longitude, nas extremidades da extensão, mas também na amplitude ou na latitude da potência de ser afetado; eu aumento a potência de ser afetado. Ao aumentar a potência de ser afetado, eu sou capaz agora, eu tenho mais força, mais energia, mais potência para receber outras modificações sem ser decomposto – inclusive modificações que possam, eventualmente, ousar decompor o meu ser, mas eu já vou ter mais força para me defender, eu já crio escudos com isso; então eu aumento a potência de ser afetado. Eu posso inclusive ser modificado ou afetado sem causar nenhum dano.

Participante: então nunca mais vai ter efeitos colaterais.

Você diminui os efeitos colaterais, você vai diluindo os efeitos colaterais até o ponto em que você ultrapassa o limiar e sai dessa zona de flutuação onde o mal já não te diz respeito; atingir esse limiar que Espinosa chama de homem livre. Aí a questão: quando você aumenta a potência de ser afetado, você aumenta também a capacidade de agir e de reagir; mas essa capacidade não é a de um eu, não é a de uma consciência – é a própria potência, já duplicada, que se expressa em você e que conduz e canaliza.

Participante: mas aí você não escolhe.

Não escolhe, não tem escolha. Mas existe um aumento de liberdade. Por que? Porque eu aumentei a minha potência, a capacidade.

Participante: aumento de capacidade, não de liberdade.

Mas a liberdade, diz Espinosa, é igual à necessidade.

Participante: podemos dizer que a ordem da necessidade prevalece; mas a maneira que eu vou lidar com essa quantidade de afeto, eu é que vou ser capaz de administrar o quanto aquilo me afeta. Não o que me afeta, porque se é da ordem da necessidade, vai estar me afetando; mas eu vou administrar, pelo menos, o grau de intensidade desse afeto para mim – se ele me decompõe ou se ele me fortalece, é nesse sentido.

Isso. É o seguinte: você vai, na realidade, sair da zona determinista, ou seja, a necessidade não vai ser igual a um determinismo; a necessidade vai ser igual à própria liberdade. Você leva a necessidade para o campo da liberdade e não a necessidade para o campo do carma ou do determinismo. A liberdade é exatamente você levar a sua potência a se isentar do Mal, ou seja, não importa o que venha te afetar. Inclusive na pior relação, você encontra o plano de composição. Tudo se compõe – aí o Mal se dissolve.

Participante: se eu aprofundar isso para a questão da imunologia, com o câncer. Você se tornar imune – essa questão da imunidade, mesmo.

Na realidade, quando você habita, você ultrapassa esse limiar e a sua potência de ser afetado é suficientemente preenchida por ações no limite tal em que as paixões já não te levam para a escravidão – você tem um mínimo de paixões -, até um câncer se torna uma linha de fuga afirmativa.

Porque você sai do campo do indivíduo enquanto este indivíduo limitado; você habita a pluralidade de indivíduos que há em você simultaneamente. Essa é a questão. O homem livre entra em velocidade absoluta porque tudo flui – aí sim – simultaneamente nele; então há uma coexistência de todos os indivíduos nesse indivíduo. Mas mais do que esse indivíduo, ele já é o indivíduo das simbioses, das comunidades, do cosmos – ele entra no indivíduo infinito. Então, na medida em que ele habita isso, não tem mais nenhum problema do Mal; o Mal perde totalmente a consistência ou a suposta realidade.

Da mesma forma que o Bem, porque você não tem como escolher em direção ao Bem. É a determinação da sua potência.

Participante: aí você sai do Mal e sai do Bem. Você vai para um padrão mais amoral.

Além do bem e do Mal. Então a questão é sairmos da ilusão do livre arbítrio, porque o livre arbítrio o que é? Eu penso que eu sou livre quanto mais ignorante eu sou. Claro que eu não digo isso para mim mesmo, eu até acho que eu sou muito sábio porque na medida em que eu habito esses efeitos, eu tenho muitos efeitos; e quanto mais efeitos eu tenho, eu acho que o efeito é sinônimo de sabedoria; e cada ideia dessa eu ligo uma com a outra sem uma relação imanente de composição, mas agora é uma relação de organização exterior a elas mesmas; então eu ligo uma imagem com outra imagem, mas acredito que essas relações de associação são livres. Quanto mais eu ignoro as causas, mais eu acredito que elas são livres. Então essa liberdade da ligação dos efeitos entre si – uma ideia com outra ideia, aleatoriamente, arbitrariamente (assim é o simbólico, por exemplo: no simbólico você diz “isso quer dizer isso, que quer dizer isso” – você liga com o que você quiser, é completamente arbitrário) – se projeta também na minha vontade e na minha consciência, na medida em que o estado do meu corpo ou da minha alma tem uma variação contínua de diminuição ou de aumento de potência, segundo aquele encontro me favoreceu ou me desfavoreceu. Então na medida em que o meu desejo se cola a esse efeito, ele se torna esse próprio efeito; então o efeito flutuante não tem causa e eu penso que a minha vontade é livre. Esse efeito flutuante é livre para se ligar a tal outro efeito exterior, a tal outra causa final, a tal outro objetivo ou projeto da minha ação, segundo essa minha vontade livre. Então é porque a minha vontade está completamente descolada, desconectada – e essa é a ilusão de solipsismo, ou seja, meu corpo ou a minha alma estão desconectados da natureza ou do que banha o que esse corpo e essa alma. Ou seja, está descolado do atributo Pensamento e do atributo Extensão, e se vê como átomo.

Aí necessariamente você acredita que a necessidade se opõe à liberdade; a necessidade é ligada a um indeterminismo, a um carma. A necessidade começa a ir para o lado da liberdade na medida em que ela se liga à potência; e o que é a necessidade da potência? A potência se efetua, necessariamente ela se efetua – sob a minha relação ou sob outra, necessariamente ela vai se efetuar. Só que eu, na minha consciência prepotente, acredito que ela tem que se efetuar sob o meu comando, sob a minha relação, necessariamente; então aí eu acredito que a necessidade se opõe à liberdade. Mas quando é a potência, realmente, aí já não é mais um eu, não é mais um sujeito, não é mais uma substância, não se liga mais a uma forma, mas é modo com intensidades que se expressam. Eu sou preenchido por uma pluralidade intensiva de afetos que coexistem em mim e se expressam simultaneamente numa expressão que, no fundo, é a própria noção comum.

Aí eu atinjo a velocidade absoluta. A noção comum é como se fosse a pista, a estrada onde eu atinjo a “velocidade da luz”, para usar a imagem, para ver se assim a coisa fica mais fácil. A noção comum é a condição do movimento infinito, é o canal onde os movimentos infinitos se dão; e a velocidade absoluta é a intensidade viajando em velocidade absoluta. Mas ela só viaja em velocidade absoluta na medida em que ela e o canal, ela e a pista, formam um único ser; aí você, através da noção comum, atinge a singularidade – que é o terceiro gênero do conhecimento. Intuição. Aí você atinge o ser. Assim, numa relação de matéria – por exemplo, você ouve um som, ouve uma percussão de um modo tal que aquilo te toma, te invade absolutamente. Essa percussão, esse som ou essa composição, esse agenciamento ou essa simbiose, a princípio se dá, se eu ainda vislumbro a diferença entre um e outro, apenas através de uma noção comum; mas quando isso se torna uma presença absoluta, eu atinjo a singularidade dela, eu atinjo a potência dela nela mesma. Eu intuo, é a intuição da essência; a essência nunca é uma forma, a essência é sempre uma intensidade; eu atinjo a intensidade. O que é atingir a intensidade? Eu capto aquela complicatio que a constitui, eu capto tudo simultaneamente. Então aí o número… “Vamos dizer que o absoluto é atingir o número dez, então eu tenho dez seres em mim ao mesmo tempo” – o número não significa mais nada. Se eu tenho dez, se eu tenho vinte, um milhão, o infinito ou um, ele não diz absolutamente nada. Eu capto toda a realidade nela mesma simultaneamente. Então através da noção comum eu atinjo a singularidade e atinjo o terceiro gênero do conhecimento.

É assim que eu tenho a ideia de Deus, segundo Espinosa: você, na superfície, na relação, no meio, você atinge. Você pode atingir Deus olhando o fogo, ouvindo um som; você atinge Deus na sua forma expressiva enquanto atributo extensão; é a expressão comum a todos os corpos, mas eu levo essa expressão ao seu limite, ao seu limiar extremo. E aí a minha longitude atingiu o absoluto, e a minha latitude também. Aí eu pulso e expando, eu pulso e expando, eu entro na mesma sintonia do universo.

Participante: mas aí, na medida em que você atinge a latitude máxima, você também está atingindo a longitude máxima. E outra, quando você transcende o Mal absoluto, você também transcende a alegria, quando você é afetado. Ou não?

Você transcende a alegria vaidosa, mas você tem a alegria plena, o contentamento.

Participante: isso faz parte de uma maneira que se dissolve, você não está dependendo do Mal ou do Bem. É sempre uma alegria. Então há a tristeza, que é o oposto. Se você está falando que além do plano de Bem e Mal há uma alegria ainda…

Espinosa chama de alegria íntima ou contentamento íntimo ou beatitude.

Participante: porque a alegria é mais “adolescente”; talvez seja um nível mais acima, vai se expandindo, vai atingindo uma plenitude.

Uma alegria serena, não é aquela alegria eufórica, não é euforia. Aliás, você se torna absolutamente veloz na imobilidade, como diz Deleuze para não espantar os devires.

Participante: é um pensamento taoísta.

Participante: por que você falou pulsação, se só tem a expansão? Você disse: eu pulso e me expando, eu pulso e me expando.

É complicatio e explicatio, implicatio e explicatio, dobra e desdobra. Existe sempre a intensidade e a extensidade, necessariamente ao mesmo tempo, simultaneamente.

Participante: esse é o pulsar. E sempre expansivo.

Sempre expansivo. Não é um estourar, não é um expandir na extensão – ainda que haja um efeito na extensão. É você fazer ressoar todos os níveis que te constituem. Essa ressonância se dá no plano dos elementos intensivos sob a tua relação singular, mas ao mesmo tempo essa ressonância te abre para a capacidade de ser afetado; te abre ao máximo. Então ao mesmo tempo que você é inteiramente ação, você é inteiramente recepção também; aqui que se atinge a entrega absoluta, a doação absoluta. Mas é uma doação onde essa potência vai dar a sua variação, o seu ritmo, a sua regência – já que estamos regendo uma sinfonia, há uma regência singular.

Aí a singularidade entra em cena. É o princípio de individuação inteiramente atuante, ele não está pela metade; o que individua cada relação, o que singulariza cada relação, é essa quantidade de energia sua sempre preenchida por uma composição, por uma ação. Então as modificações que você produz no outro ou na sua existência se produzem, se duplicam também na tua essência; é por isso que você acaba se identificando ou se colando no plano de imanência ou no corpo sem órgãos ou no plano de composição. Você vai esculpindo. Imagine uma matéria amorfa; se você não fizer nada, você só tem relação com essa matéria amorfa e opaca, digamos assim. Aí você vai lá e abre um buraco, faz um canal; então você já tem aquela matéria amorfa, opaca, e um canal. Aí você vai lá e faz mais outro; daqui a pouco você liga um com o outro; e você vai construindo o seu plano de imanência. Você vai se tornando mais real. E quanto mais canais você abrir ou esculpir ou lapidar, como o seu próprio corpo, mais você faz do seu corpo – ao contrário do que falava Sócrates e Platão, em que o corpo era a prisão da alma ou até o túmulo da alma – o templo da vida. Você vai lapidando, lapidando, e ampliando e pluralizando as múltiplas maneiras de ele ser afetado. Você vai aumentando a capacidade de ser afetado e de afetar, você aumenta a comunicação – e aqui a comunicação não tem nada a ver com o sistema moderno de comunicação, é a noção comum, mesmo, a ligação direta do ser.

O que é o ser? O ser é, na realidade, esse meio, e o devir são os modos que se encontram no ser. O ser é o plano de imanência e o devir são as composições no plano de imanência. Então quanto mais você lapida, mais você diferencia o ser. E por isso o plano de imanência – que aparentemente é comum, é genérico, é até abstrato enquanto você não o toca – se torna cada vez mais singular e próprio; você cria o seu mundo próprio quanto mais você o lapida, quanto mais você o constrói.

E você só o constrói quando você é ativo. E quando você é ativo? Quando você tem a duplicação da sua potência segundo uma composição de relação; a duplicação gera um excedente de potência, um duplo de potência que se explica em você; quando aquilo se explica em você, aquilo já está abrindo o canal, automaticamente. O canal é a própria explicação. A explicação é como que a ação de um escultor, digamos assim; a natureza vem e abre, ela inventa novas percepções, novas sensações, novas ideias; ela cria o meio para que isso emerja. Até então isso não existia.

Participante: você está falando de uma coisa que você está fazendo agora, porque senão não acontece. Você vai explicando e vai abrindo ao mesmo tempo. É prático e teórico.

É completamente prático, é filosofia prática. É por isso que Espinosa é o filósofo que mais faz com que a filosofia vá para a vida. É filosofia para a vida, completamente a serviço da vida. A filosofia é a vida, ela se identifica com a vida.

Participante: é isso que dá esse sentimento de que a natureza é perfeita, acabada?

Sem dúvida. É isso que Espinosa mostra quando ele diz: eis um plano de composição da natureza. É a própria ética, a ética é isso, do livro I ao V da Ética é um plano de composição, é como a natureza se compõe. Eis o mais puro plano de composição, eis o mais puro plano de imanência. Por que mais puro? Porque limpa tudo, limpa os meios, limpa esses efeitos, limpa essa teia de aranha que vem querer mediar as relações. Tira tudo fora e diz: eis a natureza nua, como ela é. É por isso que você lendo a Ética, o livro I que é supercomplexo – noções de Deus, de atributo, uma linguagem medieval, um troço maluco. E você diz “é só conceito abstrato, é só ideia filosófica, até rançosa, você pode até imaginar que é uma coisa absolutamente teórica e separada da vida. No entanto ele está limpando e construindo o plano mais imediato para que a vida aflore inteiramente de modo imediato, para que a vida conquiste, ou reconquiste o plano de expressão contra a representação. Aliás não é nem contra a representação, a representação vira secundária e desaparece. Ou no máximo vai ajudar a organizar as relações na reflexão da consciência, porque a organização nasce da reflexão, mas a reflexão só existe a partir de uma posição – algo se põe, depois se reflete.

É por isso que Espinosa diz que a ideia vale por si mesma; a ideia da ideia não acrescenta nada à ideia. A ideia é antes ideia; a ideia da ideia já é uma reflexão. E Espinosa diz que a consciência sempre é algo de algo, é sempre a ideia da ideia ou sempre uma realidade de outra realidade; é um espelhamento, é uma reflexão. Não que isso não sirva para nada, você pode brincar com a reflexão, você pode usar a consciência, ela serve para ajudar a organizar os encontros, com certeza; mas ela tem que estar submetida a esse pensamento que é imanente. Aí não tem reflexão, aí é expressão pura imediata. A reflexão é uma das propriedades do ser, mas não é a essência do ser. Então é a grande potência da obra espinosista; o espinosismo é isso, é trazer a vida para esse puro plano de imanência. Plano aqui já não tem a ver com projeto, até programa ou desenho; ele é o mapa do ser, é onde o ser se liga ao próprio ser.

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Aula 01 – Introdução ao curso

A sabedoria é mais ligada a sacerdotes, religiões, Estados, leis, estruturas fixas que devem ser conhecidas por meio de alguma ascese ou de algum exercício que leve à ascensão até essas formas, do que propriamente a um exercício de pensamento. Então a nossa questão sempre estará ligada a um retorno para a imanência do pensamento, quando se pensa em ato.

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