Começa-se por se produzir terra imunda e água suja, ou em outras palavras, produzir uma subjetividade miserável. Como?
Desqualificando as zonas virtuais do vivo. Inoculando a falta, a culpa, a insuficiência da ordem nos tempos, movimentos e afetos destituídos como caóticos. Quanto mais miserável um ser, mais se confessa humilde. Mas o inconfessável da humildade é sua vontade de poder, sua inveja, cobiça e desejo de vingança, sua ambição por reparar e recompensar todos os atrasos experimentados na impotência de existir. Essa ambição desmesurada e bem oculta, essa cupidez inconfessa, trabalha em silêncio nos porões inconscientes das vidas tornadas miseráveis produzindo uma inversão dos valores mais nobres (desqualificação das potências de fazer a diferença na existência) e estabelecendo uma distância intransponível e arrogante entre um ideal de transcendência e a vida real existente, entre a fantasia ou o sonho e o pesadelo da vida ordinária. Essa distância constitui uma dívida infinita através da ereção de um modelo eleito, doravante tornado critério de comparação. Essa medida padrão que autoriza todo julgamento opera no seio das avaliações que investem objetos ou valores significantes e que, apesar de inalcançável, é cultivada como alvo e critério de sucesso, de reconhecimento e atribuição de valor, recompensa, resgate, adiantamento, felicidade, salvação, gozo, crédito.
Empoderamento, ascensão de poder: sonho máximo de qualquer impotente, que ao conquistar um lugar atribuído de comando, pode finalmente gozar da existência.
Eis um campo de crenças do desejo coletivo e seu investimento no espelho do reconhecimento social que daí deriva. No valor da novidade, na supervalorização do banal, nas concessões de poder de verdade e normatização operada pelas mídias, nas funções, cargos e profissões que reconhecidamente empoderam, nos valores de prestígio, tudo isso faz com que esposemos as referências que sobrevoam a vida. Daí nosso curvar-se humilde, atrás de cada ato vaidoso, que faz com que concedamos valor a instâncias promotoras do reconhecimento e premiadoras, fazendo finalmente o valor que nos é concedido e nos faz existir, depender do olhar de um Outro. É assim que abraçamos e cultivamos para nós todo o modo de ser do escravo, coagido por forças que vêm de fora e o afastam da potência imanente de existir e criar.
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