Luiz Fuganti
Saiu o “Empirismo e subjetividade” do Gilles Deleuze, que é a primeira obra dele, de 1953. O Luiz Orlandi traduziu. Sobre o Hume. Ainda não estava traduzida. Aliás, existem mais duas obras dele que não estão traduzidas e que são essenciais, sobre o Espinosa. A tradução de Portugal, Espinosa e os signos, pode jogar fora, está um horror e ainda faltam partes.
Também saiu Os anormais, de Foucault; são aulas de 1975, que é anterior a aquele Em defesa da sociedade, que são aulas de 76.
Da Idade Média eu ainda não passei bibliografia para vocês, mas vou enviar para vocês.
Talvez eu volte um pouco a falar de Descartes e do Renascimento, mas vou ter que dar uma saltada sobre o Descartes – que não é mesmo lá tão essencial -, situando a questão também da ausência de centro quando emerge o Renascimento; no final da Idade Média, o mundo medieval vai pelos ares: não é nem que ele é desconstruído, ele explode. E há uma descoberta do infinito. E quando se descobre o infinito, ao mesmo tempo se descobre que nem a Terra nem o Sol são o centro do universo. A revolução copernicana dá um nó também, e isso vai acontecer com a filosofia. Daí que o cogito cartesiano vai emergir; o cogito vai se liberar das referências externas, objetivas, mas ele vai inventar uma referência subjetiva: no fundo, não vale mais o que é objetivo. E aí ele vai achar que o centro é esse eu, esse cogito, e a partir daí ele vai chegar à ideia de Deus e voltar para o mundo. Mas eu posso até situar isso ao longo do Espinosa, depois; a questão do Renascimento, dos céticos – com Erasmo e com Montaigne… talvez eu situe alguma coisa.
Mas vamos entrar logo em Espinosa, porque Espinosa seria o segundo momento do unívoco: o ser unívoco, que inicia com Duns Scot… Duns Scot é que enuncia essa proposição explicitamente. Porque na realidade a história do ser unívoco é anterior, você já tem um ser unívoco com Parmênides; em Avicena isso já se passa, com a essência neutra; mas é Duns Scot que vai fazer a proposição. E segundo Deleuze, a única proposição ontológica que existe é essa: o ser é unívoco, o ser se diz num único e mesmo sentido de Deus e das criaturas – no caso de Duns Scot, que é um cristão. A questão da univocidade do ser em Duns Scot não ultrapassa a neutralidade porque Duns Scot precisa manter um ser eminente e transcendente que seria Deus, uma entidade eminente e transcendente. Então Deus transcende a natureza, ainda em Duns Scot. Ele vive no século XIII para o século XIV, isso é uma condição inclusive de sobrevivência dele.
O ser em Duns Scot é neutro. Mas em Espinosa esse vai ser tornar um ser afirmativo. Então esse seria o segundo momento do ser unívoco. E nós vamos ter também as diferenças formais – a distinção formal real e a distinção modal em Espinosa, também. Já muito mais concreta do que em Duns Scot. Vai haver uma distinção formal entre os atributos e a distinção modal entre os modos, que é uma maneira de fazer da diferença uma expressão pura; a diferença se expressa por si própria, ela se pensa por si mesma, não é necessário mais ser mediada; a diferença já não é aquele demônio, aquele fantasma, aquele caos que deveria ser subjugado ou mediado, domesticado através de uma representação. Então a diferença que se expressa na distinção formal e na distinção modal é uma diferença já sem mediação, uma diferença que cai no campo da expressão, é pura expressão; quando tem expressão, não tem mais representação, a expressão é uma relação direta, não tem mediação.
Então a distinção formal e a distinção modal nós vamos encontrar em Espinosa também. Então em Espinosa encontramos o ser unívoco, encontramos a distinção formal, a distinção modal. Mas o ser de Espinosa já é completamente afirmativo, não é mais um ser neutro. Então isso é só para dar uma situada historicamente, acho que podemos falar um pouquinho sobre a bibliografia, aí entramos um pouquinho na vida de Espinosa e em seguida nós vamos entrar na questão da filosofia prática.
• Participante: o ser é neutro nos estóicos ou o ser é neutro com a descoberta do cogito?
Não, o ser é neutro em Duns Scot. Aliás, Descartes retoma a escolástica inteira, Descartes no fundo é tomista. Ele reintroduz absolutamente a analogia. Ele vai achar uma substância para o corpo, uma substância para o eu e uma substância para Deus; em Descartes vão haver três substâncias. O Espinosa é que diz “não, só tem uma”. E Espinosa vai dizer “o meu corpo e a minha alma não são substâncias, são modos”. Já é uma distinção radical: é uma modificação divina; é divina, o ser é direto, o ser está na imanência em Espinosa. Isso nós vamos ver.
• Participante: em que ele se distingue do Duns Scot?
Em Duns Scot, o ser infinito – que seria Deus – é eminente em relação às criaturas, ele é superior às criaturas; ele está fora porque ele transcende a criação, ele cria de fora. Mas há uma comunidade, que é o próprio ser enquanto ser; o ser enquanto ser que é unívoco, é o mesmo em Deus e na criatura em Duns Scot. Em Espinosa esse ser vai se chamar atributo: os atributos, em Espinosa, vão ser unívocos. E os atributos constituem a essência da substância e compreendem os modos. São os mesmos atributos. Então o atributo pensamento: o que constitui o pensamento de Deus, em Espinosa, ou da substância, é o mesmo que compreende o meu pensamento, é o mesmo atributo; o atributo é unívoco, o atributo é uma maneira da substância ser, uma maneira de ser da substância. Mas eu preciso entrar para não ficar muito abstrato. Só para te dar mais uma sinalizada nesse sentido, eu sou parte da substância; então Deus age através de mim, em mim – eu já sou a expressão direta de Deus, eu sou Deus, eu tenho uma parte dele. Então essa parte não tem um ser segundo, o ser é o mesmo. Então Deus existe, pensa, age, produz do mesmo modo como eu penso, ajo produzo – claro, se eu for ativo. Ele age através de mim.
• Participante: eu tenho a impressão de que Duns Scot já dizia isso.
Não.
• Participante: nesse caso, é continuação do Heráclito? O fogo primordial…
Tem muito de Heráclito, mas Espinosa…
• Participante: eu sei, mas nesse sentido em que você está comparando a eminência ou não, Heráclito não tinha eminência.
Não tem eminência, é imanência. Nesse sentido, é Heráclito. Com certeza. Tem muito dos estóicos, tem muito de Epicuro e Lucrécio. Mas essa questão do ser em relação à substância tem a ver com o fogo de Heráclito, tem a ver com o fogo dos estóicos e tem a ver com o ser de Parmênides – não o ser segundo a interpretação de Platão, porque segundo a interpretação de Platão, o ser é o nous, é o pensamento; em Espinosa ele é também pensamento, mas é também corpo. Tanto é que Espinosa diz que Deus é corpo. Isso é uma heresia absoluta.
Vamos situar a bibliografia. O que temos de Espinosa em português são as obras da Editora Abril.
Temos os Pensamentos metafísicos de 1663, que são já um apêndice dos Princípios da filosofia cartesiana. Ele faz uma digestão da escolástica inteira. A escolástica vai até o século XIV, até quase começo do século XV. Ele dá uma digerida e ao mesmo tempo se serve já da linguagem de Descartes para já começar a enrabar Descartes. Espinosa nunca se inspirou em Descartes, nunca foi cartesiano; ao contrário, ele já começa, logo em 61, 62.
Tratado da correção do intelecto. Essa obra é uma obra inacabada de 1660-1663, que trata sobre o método. Então Espinosa quer inventar um método para corrigir o intelecto, ele vai dizer que o homem tem uma relação imediatamente ilusória com a natureza; então ele quer fazer uma correção ótica. Nós vamos ver depois que coisa fantástica que ele faz, o que é o método dele. É muito louco.
Só que aí, já em 61, ele começa a redação da Ética e acaba só em 75. Ela é publicada em 77, já depois da morte dele. Então ele leva praticamente 14 anos para fazer a Ética. E já em 61 ele tem uma noção nova, que é chamada noção comum, que meio que torna o Tratado da correção do intelecto ultrapassado desse ponto de vista; ele descobre a noção comum e ele ultrapassa o impasse que ele estava desenvolvendo no Tratado da correção do intelecto. Então quando ele descobre isso ele já parte direto para a redação da Ética, aí já não tem mais nada com didática, aquela fase professoral dele acabou, aí é a obra mesmo direta. Essa tradução da abril não está nada boa, tem confusões terríveis aqui; o exemplo mais estúpido é a confusão entre afeto e afecção, que em Espinosa é fundamental essa distinção.
Em 77 – fica inacabado também – ele escreve o Tratado Político. Essa obra acaba, como diria Deleuze, simbolicamente com o capítulo sobre a Democracia. O impasse. Espinosa vive isso muito na carne, ele é muito perseguido, ele sofre muito. E aí a questão da aula passada, “será que ele era feliz, será que ele vivia alegre com todas essas perseguições?”. Eu te disse que evidentemente que sim e vamos entender porquê. Com a filosofia dele mesmo vemos que é impossível o cara não ser alegre e expansivo e efetuar toda a sua potência com a própria filosofia que ele inventa.
Além dessas obras existem algumas cartas de 1661 a 1674, não tem todas; se vocês quiserem as cartas completas, existe a edição em espanhol da Editora Alianza.
Uma outra obra que ele publicou anonimamente foi Tratado teológico-político. (As únicas obras que Espinosa publicou em vida foram os Princípios da filosofia cartesiana e Tratado teológico-político). Essa edição é de Portugal, não sei se ainda existe. Muito boa essa edição, a tradução está boa.
Existe uma obra em francês, que chama Spinoza – Oeuvres completes. Aqui existem obras como Breve tratado, que é de 59 ou 60, mas ele começou a redação, se não me engano, em 56. Tem também duas outras obras: Tratado do arco-íris, que é uma obra de Física, e outra obra de matemática chamada Cálculo das chances ou Cálculo das probabilidades, que são obras perdidas.
Duas obras de Gilles Deleuze sobre Espinosa, em francês: uma de 1968, outra de 1970, reeditada em 81 com dois capítulos a mais. Essa de 81 é Espinosa – filosofia prática e a outra é Espinosa e o problema da expressão.
Outra obra muito interessante, eu não sei se faz muito tempo que saiu: A anomalia selvagem, do Toni Negri. O subtítulo é Poder e potência em Espinosa, que se refere àquela distinção em latim entre potentia e potestas.
Participante: por que esse título, A anomalia selvagem?
Ele é um anômalo porque ele não é nem anormal nem normal, ele não está nessa classificação, ele é um anomal. Essa noção é do Jorge Canguilhem, é o que não se classifica nem no esquema de normalidade, sob as normas e os valores estabelecidos, e nem o que o negativo desses valores atribuiria a alguém que não se encaixa na norma, que seria o anormal. Então não seria nem uma coisa nem outra, seria o anomal. O anomal vive no limite de uma invenção.
Participante: o gênio?
É o gênio que atravessa.
Participante: é o singular, não é?
É uma singularidade. E selvagem porque não tem nenhuma domesticação possível.
Participante: ele vive na membrana, não é? Faz parte e não faz.
Ele está no plano de imanência. É a membrana, sim. Perfeito. Membrana física e metafísica. É plano de imanência.
Agora, existem duas outras obras do Martial Gueroult chamada L’Ethique, que é um comentário sistemático sobre o livro 1 e o livro 2 da Ética. São 5 livros na Ética. São comentários, proposição por proposição. É muito interessante porque ele analisa tudo: de onde vem tal coisa, etc. Só que ficou nesses 2 livros, ele não foi adiante.
Participante: e a Marilena?
Eu assisti algumas aulas dela de Espinosa, eu a acho super-rigorosa, uma pessoa bem séria, bem interessante; eu só não compartilho do mesmo modo de interpretar, eu a acho um pouco mais sociológica, digamos assim, e talvez excessivamente ligada à democracia, pela vocação marxista e psicanalítica que ela tem. Mas eu a acho uma pessoa séria, acho que vale a pena ler o Espinosa dela. Eu não tenho ainda aquele livro A nervura do real, eu li algumas coisas da tese dela – de 1985-86 eu acho, e assisti algumas aulas. Eu a acho super-didática, super-criteriosa, acho que até vale a pena dar uma investida. Quem puder comprar e ler, eu acho que ela é séria, ela não é uma aventureira, muito ao contrário, ela ama Espinosa mesmo, ela sabe tudo de Espinosa. Acho que temos que ter muito respeito pela obra dela, pelo trabalho dela, é uma pessoa séria.
Participante: tem uma parte desse livro dela falando sobre a melancolia que é fantástica.
Em alguma hora eu vou ler. Ela é muito legal.
A vida de Espinosa é uma vida realmente muito complexa, muito complicada; a questão da inserção dele na sociedade holandesa. Espinosa nasceu em 1632 em Amsterdã; ele é descendente de judeus portugueses ou espanhóis – a Chauí diz que são portugueses porque o modo como Espinosa escreve em latim tem a mesma estrutura que a língua portuguesa, então ela defende a tese de que são portugueses mas isso é discutível. São ex-marranos, ou seja, judeus que foram obrigados a se converter ao cristianismo e a emigrarem para a Holanda no final do século XVI – 1590, por aí. Não sei bem quando a família de Espinosa chegou na Holanda, mas ele nasceu em 1632 num bairro judeu de Amsterdã.
Até os 24 anos ele viveu nesse bairro judeu, até ser expulso da sinagoga; ele foi excomungado da sinagoga e, ao mesmo tempo, acabou também por abandonar os negócios do pai, porque o pai dele era comerciante e ele e o irmão tocavam o negócio do pai – foi dos 13 aos 24 anos que ele ficou fazendo isso. E aí ele vai ter uma vida de errância que torna as condições de existência ou de sobrevivência muito precárias, na medida em que os meios sociais da época eram muito fechados, ele sofreu muitas perseguições. Logo que ele é excomungado, ele sofre também uma tentativa de assassinato, tentam esfaqueá-lo, e aí rasgam o casaco dele; e ele guarda o casaco até o final da vida para melhor se lembrar de que nem sempre o pensamento é bem-vindo entre os homens. Ele usava isso como uma espécie de memória seletiva fundamental: você se lembrar de fato e ter em mente que o pensamento é muito perigoso quando ele vai na direção da liberdade. E Espinosa só entende o pensamento com liberdade, outro pensamento para ele não existe. Aí vai se chamar obediência, vai se chamar moral, vai se chamar superstição, aí já é outra coisa; o pensamento necessariamente é livre.
É até comum vermos filósofos sofrerem processos no final da obra, no final da vida; mas Espinosa começa a vida dele já com uma excomunhão e com uma tentativa de assassinato; isso é muito mais raro. E evidentemente que o pensamento dele já na juventude é um pensamento extremamente forte, ele já não acredita na eternidade da alma, não acredita no Deus judaico, tampouco no Deus cristão, e uma série de questões que são essenciais para os meios religiosos, científicos, filosóficos e políticos da época ele já destitui então como superstição. Então ele já é imediatamente perseguido logo a partir da juventude dele e aí ele vai ter uma vida de errância: se não me engano são 3 cidades ao longo da vida dele, que é uma vida breve também, porque ele morre em fevereiro de 1677, aos 44 anos, de uma infecção pulmonar.
Ele inventa uma maneira de sobreviver e aprende a arte de polir lentes, ele vai ser um polidor de lentes; é uma arte que tem muito a ver com aquilo que ele vai fazer com a filosofia, com o pensamento, porque ele vai dizer – tanto na Ética quanto no Tratado teológico-político – que a demonstração é o olho ou a visão do pensamento; a terceira visão é o olhar do pensamento e é como uma lente bem polida. O Henry Miller tem uma citação interessante sobre sábios, filósofos e artistas; ele vai dizer: “a meu ver, os filósofos, os sábios e os artistas não passam de polidores de lentes; eles vão polindo, polindo, polindo, deixando a lente cada vez mais perfeita para, no final, verem, perceberem, apreenderem o quanto esse mundo é maravilhoso”. De fato é o que Espinosa faz: ele vai polindo, polindo, polindo e ele constrói um plano de imanência como nunca ninguém viu, como nunca ninguém jamais repetiu, também. O plano de imanência que Espinosa constrói é um plano completamente cristalino, puro; se você habita esse plano, é impossível você cair na transcendência, não tem como. Espinosa tocou a nervura do real – essa expressão da Chauí é superfeliz, é a nervura mesmo; ele foi lá no âmago onde tudo se tece. Ele soube reencontrar onde o real se produz e onde se produz em nós. Ele soube encontrar a imanência.
Então Espinosa usa dessa atividade de polir lentes para sobreviver e ele não precisa dar aulas ou não precisa se tornar um professor público; ele até é convidado numa certa época para dar aula numa universidade, mas ele avalia que é melhor não, porque ele corre muitos riscos, ele é muito visado. Só uma obra ele publica com o nome dele; a segunda obra é anônima e já descobrem que é dele e há uma perseguição absoluta em cima dele. Ele acaba se aliando com certos meios políticos liberais: os irmãos De Witt que são republicanos, alguns cristãos liberais também, alguns cartesianos. Não porque ele faça parte ou tenha o mesmo objetivo que esses meios ou que essas tendências, que essas comunidades, mas simplesmente porque são meios que toleram o pensamento livre. E o que Espinosa pede é exatamente isso, ele só pede que tolerem o pensamento livre, porque quando se proíbe o pensamento, então a vida inteira corre o maior dos perigos.
Participante: a pessoa que vai ensinar a ele o ofício é um cristão. Não é ele que tem preconceito contra os cristãos.
Não, de forma alguma, ele não tem preconceito em relação a isso. O que ele quer fazer, inclusive, é partilhar ao máximo as invenções dele com outros, porque inclusive no Tratado teológico-político, que é uma coisa violenta porque ele disseca a Bíblia – aliás, ele tem uma obra que chama Breviário de gramática hebraica, onde ele vai fazer a gênese de uma série de interpretações equívocas que os cristãos e os judeus fizeram ao longo dos textos do Antigo Testamento… Mas o que ele quer fazer é dizer “olha, não que isso seja banal, ridículo ou pura superstição, mas isso está num ponto em que, no melhor dos casos, vem de encontro com a razão” (o que ele chama de razão não é o que Aristóteles chama de razão, o que Espinosa chama de razão são noções comuns; então, quando eu falar de razão em Espinosa, é o entendimento). Então ele diz: “olha, isso que vem de Abraão, por exemplo, e de Cristo, tem coisas muito interessantes; mas não ultrapassa a imaginação, não ultrapassa o campo moral, não ultrapassa o campo da obediência”. E Espinosa quer o pensamento pelo pensamento, ele quer atingir o plano de imanência na sua pureza. Então ele vai acabar fazendo a genealogia disso tudo, fazendo a genealogia do cristianismo, do judaísmo, da escolástica, Descartes; tudo que é ligado ao negativo, tudo que leva a vida a ser negada, tudo que leva a vida a ser diminuída, Espinosa vai denunciar, vai desmontar, vai desconstruir. E ele sofre isso na pele já com a excomunhão; o caso da excomunhão dele é até mais violento porque ele não vai se retratar – porque Uriel da Costa e Juan de Prado, que foram excomungados também, tiveram a chance de se penitenciar e de se redimir enfim (apesar de que nenhum deles acaba fazendo isso, um deles até se suicida).
Participante: judeus também?
Sim, judeus que negavam a eternidade da alma, que diziam que Deus só existia filosoficamente. Então Espinosa já vive nesse meio. Porque os próprios judeus marranos não são crentes igual aos rabinos; e os rabinos dominam a sinagoga. O próprio pai de Espinosa é um cético, mas ele não deixa de ser suficientemente influente na sinagoga. Mas já não tem aquela coisa dos rabinos; através do cristianismo ele já tinha entrado em contato com a ciência, com as matemáticas, com a física, com outras coisas que abriam um pouco aquele meio fechado dos rabinos. Então já tinha essa coisa de uma certa dissidência nesse meio judaico.
A excomunhão foi uma coisa violenta porque Espinosa não só quis se retratar como ele ainda escreveu uma apologia contra, justificando porque ele reafirmava as ideias dele. Aí teve perseguição, aí os judeus começaram a persegui-lo – os judeus e outros mais. Tinha gente que, depois da morte de Espinosa, ia sistematicamente – acho que diariamente, ou frequentemente – cuspir no túmulo de Espinosa.
Participante: porque o processo de excomunhão deles é muito mais violento do que o católico. É extremamente violento.
Mas os judeus, felizmente, não tinham o poder, então eles não tinham o poder político, nessa época. Então o máximo que acontecia é que ele era isolado da comunidade judaica socialmente, economicamente e politicamente; mas até aí ele tinha algumas vias que foi onde ele viveu, os interstícios que ele criou.
Participante: você sabia que quase ele veio numa expedição para o Brasil? Por muito pouco. No século XVI.
Eu não sei. É possível.
A questão da Holanda nessa época é muito complexa; tem a questão da casa de Orange, tem a questão daquelas companhias de navegação, tem os calvinistas. A coisa é muito complexa. O que é sintomático é que Espinosa está sempre vivendo no limite, em perigo constante e com perseguição constante. Tanto é que ele só publica uma obra, que é a mais inofensiva, e a que é violenta ele vai publicar de modo anônimo; mas em seguida vão ligar a obra ao nome dele e aí a perseguição é mais violenta ainda. Enfim, a coisa é muito grave em relação ao modo de vida que ele leva e ao pensamento que ele traz.
Participante: a Ética é descoberta depois da morte dele e publicada depois?
Ela é publicada depois pelo amigo que fica com os manuscritos, que inclusive estava junto do leito de morte; quando ele morre esse amigo dele está junto. Daí ele já publica em seguida, sob o título de Obras póstumas – e aí tem lá várias obras dele, publicam cartas, um monte de coisas. Aí depois existe uma edição em 1882 e 86, e depois tem outra em 1925, se não me engano.
O que faz esse ódio contra Espinosa, o que faz com que Espinosa seja ao mesmo tempo o mais amado e o mais odiado dos filósofos? Espinosa tem mais do que teses teóricas: as consequências práticas dessas teses teóricas, os efeitos práticos, atingem basicamente três elementos que são três pilares do ocidente. Espinosa pode ser dito ateu, imoralista e materialista – são três acusações terríveis para uma época idealista, crente e moralista. Então são acusações terríveis. E o efeito prático que essas teses vão ter vai ser o seguinte: Espinosa destitui a consciência em prol do pensamento: Espinosa vai dizer que o que a consciência percebe ou pensa é o último efeito de realidade; ela reduz um inconsciente infinito que tem atrás dela, que é o próprio pensamento. O pensamento é todo inconsciente e a consciência não dá conta do pensamento – essa é a primeira denúncia.
Segunda denúncia: ele diz “nós nem sabemos o que pode um corpo e, no entanto, tagarelamos sobre o corpo, dizemos o meio como o corpo pode ser submetido, como a vontade e a consciência dirigem do melhor modo as paixões, submetem do melhor modo as paixões, para que o próprio pensamento seja ativo, a própria alma seja ativa; porque quando você está na ilusão de consciência, você acredita que o pensamento só é ativo quando o corpo é passivo, então você tem que submeter o corpo para que o pensamento, para que a alma seja ativa. Então tagarelamos o tempo inteiro sobre a melhor maneira de submeter o corpo, que é tido como uma coisa inerte – só não é inerte porque as paixões realmente são muito violentas. O próprio Descartes inventa lá o meio de unir, através de uma glândula pineal que ele inventa, a alma ao corpo e dizer o modo como a alma dirige o corpo. E é uma tagarelice sem fim. Espinosa, inclusive, se refere ao próprio Descartes – como se refere aos teólogos, aos moralistas, aos políticos, aos padres; mas a Descartes ele chama” o celebérrimo Descartes, que tem um saber fantástico sobre muitas coisas” (isso, se não me engano, é no prefácio do livro 3 da Ética, que é sobre as paixões) “falou muitas coisas, muitas belas e sábias coisas sobre o corpo, sobre as paixões; mas a meu ver ele não disse nada”. E aí ele discorre sobre porque Descartes falou muito sobre o corpo mas não entendia nada do que podia um corpo, do que pode um corpo.
Então Espinosa lança um modelo do corpo como uma provocação: “eis o modelo; o modelo não é a consciência; o mais espantoso, o mais maravilhoso não é a consciência”. Nietzsche já diz a mesma coisa: o mais espantoso não é a consciência, o mais espantoso é o corpo. Como o corpo é possível? E, em função do corpo, ele – ao fazer essas provocações, dizer “olha, nós nem sabemos o que pode um corpo, como é que saímos aí falando e tagarelando do melhor modo de submetê-lo? Precisamos pensar o corpo”. Ele está dizendo o seguinte: que assim como há o inconsciente do pensamento – ou seja, o pensamento não se reduz à consciência, o pensamento é todo inconsciente -, há também um desconhecido do corpo. O corpo conhecido no fundo é apenas o nosso estado de corpo, no fundo é apenas o que sentimos segundo o estado que o nosso corpo está no momento atual, nas relações atuais que ele mantém. Então é isso o máximo que conhecemos do corpo.
Esse conhecimento, diz ele, é o mais superficial; isso não é conhecimento, isso é pura imaginação. Ainda que a imagem seja real – é uma imagem real que você tem do corpo, é um sentimento real que você tem do corpo; mas é o sentimento, um puro efeito. Então ele fala as duas coisas: uma em relação ao corpo, outra em relação à alma.
Participante: o inconsciente, para Nietzsche, é o que não é consciente. Então eu poderia usar como sinônimo o corpo. Para Espinosa tem uma outra coisa, então: tem o inconsciente do pensamento e tem o inconsciente do corpo.
Em Nietzsche a mesma coisa, em Nietzsche tem também o inconsciente do pensamento e do corpo; Nietzsche chama de si ou ser próprio. Há um outro que mora em mim – ele chama si, ele chama o ser próprio.
Participante: mas como é que você pode separar dois inconscientes?
Vamos ver. Aí é a distinção formal – que não é numérica; é uma distinção formal real, mas que não é numérica. Então o corpo tem realidade e o pensamento tem realidade – aqui Espinosa começa a ficar super- interessante, porque ele não vai estabelecer hierarquia entre os atributos: o atributo pensamento não é mais importante que o atributo extensão, que é o do corpo.
Participante: imagino que o corpo seja uma extensão do pensamento, de uma certa maneira.
Não. Corpo é corpo, pensamento é pensamento; no entanto, há um elemento comum que vive nos dois, que habita os dois. Então, se acontece algo no corpo, necessariamente acontece ao mesmo tempo no pensamento. O elemento comum é a essência – que é o conatus, que é o grau de potência, que eu já vou falar. Então esse elemento é que habita os dois simultaneamente. É nesse elemento que você tem que estar – aí você está na imanência. Não é através do corpo você ir para o pensamento ou do pensamento você ir para o corpo. A relação entre pensamento e corpo não é de causa e efeito, um não causa o outro e um não é mais importante que o outro. O corpo é corpo e pensamento é pensamento. Ele dá até um exemplo: o sonâmbulo – não tem pensamento ali, não tem consciência ali. O sonâmbulo é puro corpo. Espinosa se espanta com certas coisas que ele usa como exemplo para desbancar as pretensões que tem a consciência e essa alma eminente que seria superior ao corpo.
Então ele vai dizer que a consciência é cega em relação ao inconsciente do pensamento e ao inconsciente do corpo ou ao desconhecido do corpo – que é a mesma coisa; ela é cega em relação a isso porque ela já é efeito de um encontro e ela está na posição de uma ilusão. É isso que vamos discutir hoje aqui, eu vou falar só sobre isso. Eu só vou ainda situar mais os outros dois efeitos práticos. Esse é um efeito prático, ou seja, a consciência não é mais profundo, a consciência é a coisa mais superficial e mais ignorante que habita o homem. E vamos fazer a gênese dela – imanente. Então, isso que leva a se acusar Espinosa de materialista, porque Espinosa vai fazer a gênese material da consciência – é isso que vamos ver hoje aqui.
O fato de ele ser imoral é porque ele destitui os valores de Bem e de Mal: o Bem e o Mal não existem, os valores transcendentes são ilusões de consciência também; ele destitui esses valores. Então ele não liga a existência a um julgamento de valores transcendentes, ele destitui o juízo; ele liga a existência a uma modalidade, a um modo de ser – e o modo de ser vai ser dito bom ou mau. Bom ou mau vão se referir não só às relações que o modo estabelece com outros corpos e com outras idéias, mas vai dizer respeito ao próprio modo: o modo vai ser bom ou vai ser mau segundo ele estiver fraco ou forte. Nietzsche é absolutamente espinosista quando ele diz que o mau é o fraco – depois vamos ver isso também. Então aqui você pode atacar Espinosa como imoralista: ele não acredita em valores transcendentes, ele não liga a existência a valores superiores que julguem, que avaliem ou que interpretem a existência. Ele destitui o juízo.
E aqui ele faz a diferença entre ética e moral: a moral liga a existência aos valores transcendentes e a ética liga a existência a uma modalidade imanente. Essa diferença seria apenas teórica se não tivesse um efeito prático violentíssimo. Qual o efeito prático dela? A destituição das paixões tristes. Espinosa denuncia as paixões tristes como o produto dos valores transcendentes e das ilusões de consciência. E nessa destituição e denúncia das paixões tristes, ele vai denunciar, depois de Epicuro e Lucrécio, os três tipos: o tirano, o escravo e o sacerdote.
Participante: são os ícones do ressentimento.
Exatamente. Do ressentimento e da má consciência. Aliás, Espinosa não se cansa de dizer isso. Ele usa outras palavras, ele diz ódio e remorso. O ódio e o remorso são os dois inimigos da vida. No fundo é o mesmo inimigo: é o ódio contra a vida – contra a vida do outro e contra a vida em mim. Isso é o inimigo da vida. E isso ele já sofre de saída, ele já é excomungado, ele já sofre tentativa de assassinato, ele sofre perseguições, e por aí vai.
Participante: a grande sacada dele foi na excomunhão.
Não, ele já sacava antes, mas ele não sabia que era tão violenta a opressão, a pressão mesmo para que a liberdade não emerja. É um negócio muito forte.
Então Espinosa tem motivos de sobra não para sofrer influências – “ah, porque fulano de tal influenciou ele, então daí ele teve essa ideia genial”; porque tem umas biografias estúpidas que ficam dizendo “ah, então teve o meio cristão que fez com que Espinosa pensasse assim, teve uns judeus, aí teve Descartes, e teve não sei o quê”. Espinosa é completamente original; claro que tem uma série de influências, mas são ocasiões que excitam a criação; o que ele cria é absolutamente único e a partir de si – ele deve a ele mesmo.
Esse contexto faz com que ele conceba uma comunidade de livres, ele sonha com uma comunidade de homens livres; ele diz que uma comunidade de homens livres só é possível no entendimento. Por que? Porque a consciência, que gera essas ilusões, necessariamente gera uma sociedade que se liga a um plano transcendente de organização e que tem como efeito imediato a obediência – porque esse plano transcendente é sempre uma palavra de ordem, é sempre um valor, é sempre uma proibição ou uma permissão. Então o efeito imediato do indivíduo em sociedade é a obediência. Aqui existe uma discordância: eu não vou dizer da Marilena Chauí – eu não sei dizer como ela está pensando isso hoje -, mas dizer que Espinosa é um democrata, que tem isso como objetivo, é uma bobagem, porque Espinosa não acredita que a sociedade democrática atinja um ponto onde o pensamento seja o dominante; ele até pensa, até sonha com uma comunidade de homens livres onde o entendimento, onde o pensamento triunfe; mas a vida em sociedade é necessariamente uma vida de obediência. Então aqui existe um problema que faz com que o pensamento de Espinosa não possa nunca ser reduzido a uma sociologia ou a um Estado democrático, um Estado de direito; o pensamento de Espinosa ultrapassa qualquer sociedade ou qualquer sistema coletivo. Aliás, Espinosa pensa a singularidade e a singularidade, necessariamente, está aquém ou além do individual e do coletivo, ou do privado e do público – ela ultrapassa essas dicotomias e ela é anterior. Então habitar esse elemento anterior é todo o problema do modo de vida.
Espinosa inventa então um pensamento para fazer da vida uma liberdade; a vida está imediatamente ligada à maneira de se expressar, ao modo de viver. Então vida, modo de vida e pensamento são uma coisa só. Aí sim você pode dizer que corpo e pensamento andam juntos: no modo de vida. É o estilo, é o modo.
Participante: que modo de vida é esse?
É isso que nós vamos ver. Estou introduzindo.
Participante: ainda assim é possível se falar numa comunidade de pessoas livres, através do entendimento. Por mais que seja um plano de imanência, um plano de subjetividade plena.
Não é mais subjetividade, porque é o que Espinosa vai chamar de noção comum. É a condição da relação. Tudo está na relação; quando você atinge a condição da relação, você atinge a noção comum; e a noção comum não é um universal, não é um abstrato como era em Aristóteles – não é uma lei, portanto. A noção comum é a condição singular daquela relação, daquela composição. É isso que o homem livre atinge. Uma comunidade de homens livres só é possível se se viver habitando essa condição. Então o entendimento ou a razão, em Espinosa, pensa essa condição comum – que não é o geral: o comum é a condição da relação. E não é particular também, ele é singular; não é de uma parte ou de outra parte, ele é a própria relação, ele é uma exterioridade pura.
Participante: é uma partilha momentânea do encontro.
Isso, do encontro. Mas é uma relação.
Participante: mas mesmo assim essa partilha momentânea do encontro, que pode gerar essa comunidade de homens livres, também traz o constrangimento naquele que está presente. Quer dizer, a liberdade não é plena porque necessariamente a relação tanto abre quanto oprime.
Não, vamos ver daqui a pouco a razão disso. Só para sinalizar: Espinosa chama isso de segundo gênero do conhecimento. O entendimento é o segundo gênero e o entendimento pensa relações. E ele diz: existe o terceiro gênero que pensa essências – ele chama de intuição; a intuição vai direto na essência. Um vai na relação, outro vai na essência; um vai na condição da relação ou da composição, e outro vai nos elementos que se compõem, que são potências, que são essências. Esse é o terceiro gênero. E outro gênero de conhecimento – ele chama de primeiro gênero – é a imaginação. Então tem a imaginação que é a coisa mais comum, imediata – todo mundo está imerso na imaginação -, que é o primeiro gênero; o segundo gênero já é uma conquista, uma liberdade; e o terceiro gênero é a velocidade absoluta do pensamento. Você entra em velocidade absoluta – movimentos infinitos e velocidade absoluta. O livro 5 da Ética, a partir da proposição 21, é inteiro na velocidade infinita e nos movimentos absolutos. O livro inteiro atinge esse ponto. Plano de imanência total.
Participante: você não pode falar que é geral.
Não é geral, nunca é geral.
Participante: e dá para falar que ele foi o precursor do pensamento do fora? Mas se atribui isso a Nietzsche.
O que é o plano de imanência? É o fora. Então Espinosa é o que concebeu o plano de imanência mais puro, não teve outro. Nesse sentido, Espinosa é um pensador do fora – fora do poder, fora do saber. E esse fora, como diria Foucault, é mais longínquo do que qualquer exterior e, ao mesmo tempo, é mais próximo do que qualquer interior. O fora é o imediato da relação. O fora é onde pensamento e corpo se tocam o tempo inteiro, é onde você não para o movimento. É o que o estoico chama de subdivisão infinita do instante – é aquele ponto onde você desfolha o presente, você faz do corpo a mínima espessura e do pensamento o acontecimento mais intenso na medida em que você o subdivide. Isso que é a nervura do real, é aí que tudo se tece; então aí que está o plano de imanência, isso que é o fora. Então o fora não é uma interioridade, um sujeito que pensa, e nem uma verdade que está num objeto.; não está nem no objeto nem no sujeito; está nesse entre absoluto, nesse entre puro, nesse entre que é o puro fora; que ao mesmo tempo é o mais longínquo porque a representação afasta, esconde e você acredita que ele é um mero exterior, que ele está no outro; ou leva para dentro, para uma interioridade que não é nada mais do que uma imagem invertida, uma ilusão de consciência. Mas nós vamos começar então a fazer a gênese da consciência para entender isso melhor.
Participante: a filosofia passou 400 anos buscando essa ordem, não é?
400 não, desde que ela nasceu. Quer dizer, desde que Sócrates começou a longa história do erro, que Nietzsche diz que é a crença no ideal, que a filosofia persegue isso; ela busca essa ordem.
Participante: essa ordem que ficam debatendo se está no sujeito, se está na substância… se tem uma ordem nas coisas ou uma ordem no pensamento.
Exato. Se está no objeto, se está no sujeito. O Descartes saiu do objeto ideal platônico e veio para o sujeito, que é o cogito. Espinosa devolve para o plano de imanência. Kant aí vem e critica Descartes, dizendo que ele não foi suficientemente crítico e que não pôs o sujeito no tempo, ele tirou o tempo do sujeito, o tempo e o espaço; aí Kant inventa uma forma de interioridade que é o tempo, para o sujeito, e uma forma de exterioridade que é o espaço – e põe o sujeito no espaço e no tempo. Aí essa síntese passiva em Kant é que vai fundar o homem moderno, isso que é o nascimento do homem: o homem nasce com essa forma pura do Kant, que é já uma modernização do cogito cartesiano. E esquecem o que Espinosa disse (esquecem porque não tem como, não tem conciliação possível). Hegel depois vai até acusar Espinosa de ter sido incapaz de conceber o negativo; Deleuze diz: ora, é exatamente isso que faz a glória e toda a inocência do espinosismo; é não jogar o negativo no interior do ser – a morte vem sempre de fora, nunca está dentro.
Então, voltando: vimos que os efeitos práticos da filosofia de Espinosa remetem a um ateísmo, a um materialismo e a um moralismo. Vamos falar do materialismo para fazer exatamente a gênese da ilusão. Espinosa diz que a consciência é naturalmente o lugar de uma ilusão. Por que isso? Porque a consciência não apreende a causa das coisas, a consciência só apreende os efeitos; e mais: ela já é um efeito, ela própria é um efeito, ela é o resultado do encontro dos corpos e do encontro das ideias. Ela é puro resultado. Ela é uma imagem. É por isso que o acusam de materialismo.
Participante: esse é o primeiro gênero?
Esse é o primeiro gênero, estamos vendo como ele funciona.
Participante: então você vai expor os três pilares.
Hoje um deles, mas esse é a condição para os outros dois, porque os valores transcendentes que ele denuncia no Bem e no Mal, que é a moral, e as paixões tristes que gera a religião, isso só funciona porque a consciência gera essas ilusões. Então vamos ver o que se passa.
Participante: não seria só teórico porque isso tem consequências…
A distinção entre ética e moral seria apenas teórica se você simplesmente dissesse que a existência remete a valores transcendentes, ou é julgada, avaliada, castigada ou premiada pelos valores transcendentes – seria uma postura moral -, e a ética remeteria a existência a uma modalidade imanente. Então essa distinção seria teórica apenas, se não fosse o efeito prático que ela produz porque no modo imanente a existência remetida à modalidade imanente vai fazer necessariamente a denúncia das paixões tristes, e ela vai dizer quem se alimenta das paixões tristes – o tirano e o sacerdote – para fundar um poder. E vão espalhar as paixões tristes, vão fazer questão de montar a máquina para reproduzir e fabricar paixões tristes; e vão travestir o medo com o nome de religião – a religião na realidade nada mais vai ser do que o medo com um nome mais palatável para o fraco, e o fraco vai investir a religião do mesmo modo como ele investe o seu medo, a sua covardia. E daí ele vai investir na sua servidão como se se tratasse da sua salvação – isso é frase do próprio Espinosa.
Participante: o medo elevado ao sagrado.
O medo elevado ao sagrado, exatamente. Que é a proibição. Deus diz a Adão: não comerás esse fruto, não comas esse fruto. E Adão entende como uma proibição que ele pode transgredir; Adão é um ignorante, na consciência e na ilusão de consciência entende que ele não pode comer porque é uma proibição, mas ao mesmo tempo ele pode transgredir. Em isso sendo verdade, seria uma regra de natureza e não uma proibição. O entendimento vai entender o que? Que as partes do Adão seriam decompostas como que por um veneno, como um veneno decompõe o sangue; e não como uma lei moral que proíbe aquela relação. Mas isso aí já é o modelo ético do Espinosa, do alimento e do veneno, que vai fazer com que ele diga que Bem e Mal não existem, mas o bom e o mau sim, e ele é sempre relativo na relação e ele acaba sendo atribuído também ao modo, à modalidade que se relacionou ali, que vai ter o qualificativo de bom ou de mau segundo o aumento ou a diminuição da sua potência. Mas aí já é o segundo efeito prático. Mas vamos ficar nesse primeiro efeito prático e vamos ver o que ocorre.
Espinosa diz o seguinte: tudo na natureza se encontra; há um plano comum, uma ordem comum da natureza e essa ordem comum da natureza é uma ordem dos encontros. Então tudo na natureza se encontra. Esse plano de encontros é tanto do ponto de vista dos corpos quanto do ponto de vista das ideias; as ideias se encontram com ideias, pensamentos se encontram com pensamentos, almas se encontram com almas, mentes se encontram com mentes, e os corpos se encontram com os corpos. Então esse é o plano comum dos encontros na natureza, a ordem comum dos encontros.
Na medida em que um corpo se encontra com meu corpo e uma ideia se encontra com a ideia que é a minha alma – porque a minha alma é uma ideia (diz Espinosa: a alma é a ideia do corpo; a alma não causa o corpo, mas ela é ideia do corpo, a alma é expressiva) – esses encontros geram em mim uma modificação, uma afecção. Afecção ou modificação é a mesma coisa. E essa afecção me deixa de uma determinada maneira diferente da maneira anterior; então eu fui modificado de alguma forma, eu fui afetado, eu fui alterado. Essa afecção na realidade vai ter um efeito na minha consciência – depois nós vamos ver que a própria consciência é já esse efeito – que vai fazer com que eu não perceba a natureza do corpo que me afetou, nem a natureza do meu próprio corpo, nem a condição da relação entre o outro corpo e o meu. Então a minha consciência, ou a minha alma, ou o meu pensamento não entende, ignora a natureza do outro corpo, a natureza do meu corpo e a natureza da relação que é condição comum para que esses corpos entrem em contato. Ignora essas três coisas.
O que a consciência faz? A consciência é o lugar de uma ilusão porque ela não consegue entender então a natureza do outro, a minha natureza e a natureza da relação – ou seja, ela não entende a causa das coisas, é isso que Espinosa chama de causa. A natureza do outro, a minha natureza e a natureza da relação são as causas. Então a consciência fica só no resultado, só no efeito – é isso que acontece com a consciência. E a consciência, nesse sentido, vai então interpretar aquilo que o outro causou no meu corpo, ou seja, o efeito da ação do outro sobre o meu corpo, como a finalidade que o outro corpo tinha na sua ação. Então a finalidade do outro corpo era produzir o efeito que produziu em mim. É assim que a consciência percebe. Então a consciência acredita que as ações dos outros corpos, ou todos os encontros, as modificações que eu recebo de corpos ou de almas, o efeito que essas coisas produzem sobre mim é a própria finalidade da ação dos outros corpos e das outras ideias.
Então haveria uma finalidade nas coisas. Tudo é finalizável, tudo tem uma finalidade. Então se eu me senti de tal modo com o movimento tal de um corpo ou com a ideia tal que me atravessou a partir de uma outra alma, é porque aquela alma ou aquele corpo tinham a intenção de produzir isso em mim. Então eu tomo o meu estado de corpo como a intenção do outro, eu projeto o meu sentimento como sendo a intenção do outro: o outro tinha a intenção de me deixar desse modo. Aqui está a origem do ressentimento.
Participante: e eu reduzo não só a intenção do outro como também a natureza do outro.
A natureza do outro vira uma pura intenção, exatamente.
Participante: a percepção que a consciência tem reduz não só a intenção, mas a natureza.
A natureza vira aquele efeito, só; a natureza do outro é o efeito que eu senti. Então eu projeto no outro apenas o sentimento que eu tive.
Participante: e despreza a natureza e vive você sozinho.
Puro delírio. O que Espinosa chama de flutuação da alma. Então a ilusão básica o que é? A consciência não entende a causa, então ela substitui a causa pelo efeito. Essa é a ilusão básica. Nietzsche diz a mesma coisa, só que ele chama de imagem invertida.
Então, o que Espinosa diz? O efeito separado da causa. Ele chama também de ideia inadequada; do ponto de vista da alma, é a ideia mutilada, é a ideia inadequada, é a ideia que só tem a imagem mas não tem a causa que explica aquela realidade, que expressa aquela realidade. E explicar em Espinosa não é explicar uma significação, não; explicar é a própria potência que se efetua, isso é a explicação em Espinosa. É implicare e explicare, é a força. Causa não é uma racionalidade a partir de uma significação, não tem nada a ver com essa razão abstrata; é força, é potência pura que se expressa.
Participante: é alguma coisa como se fosse uma auto-explicação, não é isso? Não há um algo que explica.
Isso, é uma auto-explicação. A coisa se explica no movimento.
Participante: porque senão a consciência estaria expandida só pelo fato de você falar isso que você falou; o delírio acabaria e você entenderia tudo.
Aí seria fácil. Aí o psicanalista seria perfeito.
Participante: mas na hora em que você coloca em dúvida a ilusão, já tem um pouco esse efeito, sim.
Participante: sim, mas o problema é que não tem o moto próprio.
O moto próprio já vamos ver onde ele fica. Então você tem a ilusão das causas finais gerada por essa ilusão básica. No fundo é uma ilusão única que se desdobra em três. Na relação com o mundo, eu vejo que o mundo tem causas finais, ele tem sempre a finalidade de produzir aquilo que eu sinto e aquilo que eu penso; aquilo que me acontece era a finalidade de alguma coisa que produziu em mim; então eu vejo isso como causa final. Agora, na medida em que eu vejo, eu sinto uma distância entre eu e essa causa final; logo, eu também posso fazer da minha ação uma finalidade. Então eu tenho aqui uma vontade – que depois faremos a gênese disso, Espinosa chama de apetite ou desejo, mas a consciência projeta isso como uma vontade; e a causa final da consciência é o seu saber. Então é saber e vontade, que depois vai atribuir a Deus. É a mesma coisa: Deus vai ter o pensamento infinito e uma vontade infinita.
Descartes mesmo, o que ele diz? Onde está a causa do erro ou da ilusão? Está num excesso de vontade e numa fraqueza do pensamento ou da consciência; a consciência finita e a vontade infinita. Olha a salada, o absurdo que vai gerando. Isso tudo é completamente rigoroso segundo o que Epicuro fala, o que Lucrécio fala, o que Nietzsche fala. O nascimento do juízo é perfeito, você vê exatamente as linhas onde ele se tece. É o movimento imanente do mundo mesmo, está na imanência; o Mal surge na imanência, só que o Mal é um mau encontro sempre, é uma relação de superfície, o Mal não está na profundidade do ser. Então essa é a ilusão. A primeira ilusão é a ilusão das causas finais.
A segunda ilusão então o que é? Se eu vejo também a possibilidade de reagir ao que aconteceu comigo, eu elaboro aqui as minhas causas finais; eu pego esses efeitos todos e os transformo em formas, em objetivos – então eu vou ter os meus objetivos aqui, imaginários. Os meus objetivos imaginários são as causas finais que eu organizo para que eu organize a minha reação, a minha prática. A partir de onde? De uma vontade. Então eu vou acreditar que a minha vontade é livre. Por que? É livre porque eu não entendo a causa, eu estou no efeito – isso já é efeito, já é puro efeito. Se esse efeito não é ligado a nenhuma determinação, eu vejo as coisas como arbitrárias, como ao acaso, como livres; elas se dão de modo ao acaso, de modo contingente, de modo livre na natureza; então os efeitos que eu sofro são liberdades da natureza, arbítrios da natureza, e eu aqui, a partir da minha vontade, posso arbitrar e organizar a minha reação. Então isso vai gerar a segunda ilusão que é a ilusão dos decretos livres. Ilusão do livre arbítrio, ilusão da livre decisão: eu decido, eu escolho, eu faço isso ou faço aquilo; então eu elaboro aqui, eu delibero. É a ilusão do juízo.
Participante: já é um modo de existência que já parte para determinados caminhos e exclui outros, não é? É uma composição de forças ali, num determinado momento, que te coage a determinadas coisas.
Você escolhe o Bem e recusa o Mal. É a postura moral. Você acredita que tem certas coisas, e muitas coisas, e a maioria das coisas vão ser más. No fundo todas as coisas vão ser más, no fundo não tem como você não sentir até a felicidade como uma maldade, não vai suportar nem a alegria quando você encarna isso daí. Claro que quando estamos nessa posição, acreditamos que não, mas no fundo… é por isso que a natureza é imediatamente justa, é por isso que não precisamos odiar o ressentido, odiar o fraco; no máximo lamentar porque ele poderia ser um forte, só isso. Mas odiar e julgar é desnecessário. Ele já se julga, ele já se faz mal a si próprio. Não adianta sair batendo e esbofeteando e odiando e julgando – não precisa, a natureza se encarrega de já punir e de fato, como ele sente o juízo frustrando aquela situação, de fato aquilo é real. Até a interpretação cristã, nesse sentido, ganha realidade. Ou seja, aquilo é signo de uma culpa. Sim meu filho, é signo da sua culpa, da sua impotência. Por que você é culpado? Porque você é impotente. A gênese disso está na ilusão de consciência.
Então você tem aqui duas ilusões: a ilusão das causas finais e a ilusão dos decretos livres; uma relativa ao objeto, relativa ao mundo, relativa ao ressentimento, e outra relativa à consciência, ao sujeito, à subjetividade.
Participante: me parece que você está falando que a abolição do ressentido é o próprio ressentimento. O próprio ressentimento já é a punição dele.
Já é a punição. Porque o ressentimento é exatamente a incapacidade de reagir; ele não reage, ele ressente. Por isso que ele odeia, por isso que ele saliva ódio e justiça.
Agora, o que eu tenho aqui? Eu tenho um mundo que me atinge com as suas causas finais; e eu tenho a minha reação que organiza esse mundo, então eu tenho que reagir a esse mundo segundo a minha boa vontade, o meu livre arbítrio, a vontade de organizar para o Bem e não para o Mal.
Participante: dá para voltar nessa gênese dessa noção da vontade, que temos uma vontade? Essa questão do apetite?
Deixa eu ir até a terceira ilusão e aí vamos fazer a gênese da consciência no desejo, como ela emerge no desejo. O que seria a consciência. Porque a consciência é uma realidade; ela não é apenas uma má consciência, tem a boa consciência, tem a consciência livre. Então é isso que precisamos ver o que é. Aí fazemos a gênese e entendemos melhor isso.
O que eu tenho então? Eu tenho lá as causas finais que geralmente são bagunçadas, elas geram desordem, geram diferença, geram arbítrio, geram violência, geram guerra. E eu tenho a reação moral: no meu livre arbítrio eu vou optar pelo Bem. E o Bem o que é? O Bem são as causas finais que eu acredito que façam com que o mundo fique pacificado, universalizado, regulado, unificado, identificado; mundo controlado, mundo doméstico, mundo familiar. Ordenamento do caos, ordenamento do acaso, das contingências; saber prever e evitar o Mal. E aí você forma um plano de organização que vai dar exatamente a referência para que, seguindo esse plano, você ganhe a ordem, você seja salvo, você seja resgatado; e não seguindo esse plano, transgredindo esse plano, você seja punido. Então você é recompensado se você segue e você é punido se você não segue.
Agora, eu vou projetar esse plano para uma coisa maior. Por que? Porque onde a consciência não alcança, quem vai alcançar? Deus. Então a santa ignorância leva já a incapacidade de explicar a ordem do mundo e a ordem subjetiva para uma explicação divina, para a vontade divina – asilo de toda ignorância. Tudo é atribuído à vontade divina: “porque Deus quis”.
Participante: essa é a terceira ilusão?
A terceira ilusão é a providência divina, é a ilusão teológica; é exatamente um ser dotado de vontade (de onde vem a vontade?), dotado de entendimento (de onde veio esse entendimento?) – um entendimento agora infinito e uma vontade infinita. Então ele pode ter vontade infinita porque ele tem o entendimento infinito; o homem tem a vontade infinita mas o entendimento é finito. Então o entendimento finito faz com que o homem erre, com que o homem se desorganize, com que o homem seja mau; mas o entendimento de Deus é infinito – então Deus tudo vê, Deus é onipresente, é onisciente e é onipotente; ele tudo pode, ele tudo sabe e ele está em tudo. E nesse saber tudo, estar em tudo e poder tudo, ele organiza a natureza como uma grande providência e um grande sistema jurídico que julga as nossas ações, as nossas paixões no corpo e no pensamento. Então é o plano teológico que se une ao plano de organização social – a sociedade agora projeta no plano divino esses valores que ela acredita serem universais e eternos. Então seria a terceira ilusão.
Espinosa diz o seguinte: essa consciência que é efeito, que não entende a causa porque está separada da causa, não entende nem a natureza dos outros corpos, das outras ideias, do meu corpo, das minhas ideias ou da minha ideia que é a alma, e nem a relação que faz com que esses corpos e essas ideias se componham. E o que é um corpo, o que é uma ideia, o que é uma relação? Espinosa diz: todo corpo é um grau de potência. Todo corpo tem uma essência e toda ideia também tem uma essência; a alma tem uma essência, é uma ideia; o corpo tem uma essência; mas, no fundo, essa essência é o grau de potência. Esse grau de potência é grau porque ele é uma parte da potência. De quem? De Deus. Deus é a potência absolutamente infinita. Por que absolutamente infinita? Porque Deus é constituído por infinitos atributos infinitos: Deus tem uma infinidade de atributos que, por sua vez, são infinitos.
E cada atributo de Deus, ou da substância… em Espinosa é Deus sive natura, Deus ou natureza; então quando se fala Deus, entenda natureza, é a mesma coisa; é melhor chamarmos de natureza porque a palavra Deus já está demais para nós. Então nós somos uma parte da natureza naturante: um corpo ou uma ideia é uma parte da natureza naturante, uma parte da potência da natureza naturante; então é um grau de potência. Mas é a mesma potência, só que é um grau dela; mas não é um ser secundário, é a mesma potência. A essência do corpo é uma potência, a essência da alma é uma potência – tudo é potência. O meu corpo e o outro corpo são potências. Então a essência não é a Forma, não é figura; a essência não é uma lei, a essência não é um universal, a essência não é uma ideia geral; a essência é uma potência. Já começa a revolução aí, a essência é uma potência.
Participante: não captada pela consciência.
Não captada pela consciência. A consciência só pega o efeito da potência. Então a potência é inconsciente e é imperceptível, você só percebe já o efeito dela, a efetuação dela, a atualização dela. Então o que ocorre? A potência, em Espinosa, é uma potência em ato. E aí a definição de desejo. O que é potência em ato? É um conatus, diz Espinosa, é um esforço. Esforço para que? Para perseverar na existência. Aparentemente essa definição é uma definição de sobrevivência, você apenas sobrevive; mas aguardem que vem mais. Então você tem aqui um esforço para perseverar na existência; a potência é um conatus, é um esforço, é um desejo de perseverar na existência.
Participante: inconsciente.
Inconsciente ou desconhecido. Se se remete ao outro, chamamos de desconhecido; se se remete a nós mesmos, chamamos de inconsciente. Então ele diz: a causa de uma relação são essas partes de potência, graus de potência; eles são a causa. E mais do que isso: eles se causam na relação; então a relação também é uma causa. Então existe causa relacional e causa essencial.
Um corte aqui: o que é uma essência ou uma potência? A potência subsume partes, contém partes como elementos de um conjunto. Então Espinosa diz: toda essência tem uma relação própria, uma relação singular que aglomera elementos, que aglomera partes, que aglomera intensidades. Então a essência é uma relação característica que subsume uma pluralidade de elementos ou de partes. Sempre você tem isso: você tem a relação singular e você tem os elementos subsumidos nela; a essência já é plural, é uma singularidade plural, não há uma essência individual – o indivíduo já é secundário, já é um resultado. Tudo é plural. Então você tem essa essência plural.
E você tem outra essência – plural também – e se encontram. Aí Espinosa diz: a ordem das causas, que a consciência não percebe – porque a consciência percebe apenas uma ordem imaginária dos efeitos, do lugar comum dos encontros dos corpos -, é uma ordem de composição. Então você tem elementos que se compõem; a ordem de composição é uma ordem que tanto pode decompor como compor, sob o ponto de vista das partes; sob o ponto de vista da natureza inteira, só tem composição. É por isso que não tem o Mal nem o Bem, porque a natureza é potência de composição.
Participante: mas tem o bom e o mau para a parte.
Exatamente, para a parte.
Então o que ocorre? No encontro você tem duas possibilidades imediatas: ou de aquele encontro se compor, ou fazer com que as duas relações singulares, que subsumem as suas partes, se componham e formem uma realidade maior, um todo maior (e é por isso que Nietzsche diz que toda consciência é função de uma parte que quer submeter o todo, necessariamente é isso) e, consequentemente aumenta a potência de agir, de pensar e de se manter na existência, das duas partes – ou seja, aumenta a potência existencial…
Participante: na medida em que eu permito o afeto.
Sim. É, mas esse “eu permito” já vamos ver o que é. Aqui esqueça que tem alguém permitindo ou não alguma coisa; tem um encontro e a coisa sempre se compõe. Só que do ponto de vista de uma parte, pode haver uma decomposição das partes subsumidas sob a sua relação característica; aí essas partes vão se compor com outra realidade que não mais a minha e eu me enfraqueço ou me destruo, eu posso morrer.
Participante: mas o juízo é uma forma de não permitir a composição.
É, mas eu já entro nisso. Vamos aqui pensar nessa coisa como é, a natureza como é; depois introduzimos o juízo de novo para ver o efeito que tem isso.
Então você tem a composição e a decomposição. A decomposição é sempre do ponto de vista de uma parte que faz com que alguns elementos que estão sob a minha relação singular sejam roubados ou se componham com outra parte, com outra relação singular. Assim, por exemplo, o veneno no sangue: ele me decompõe, ele decompõe o sangue; mas o veneno com o sangue entram em composição. Claro. Então é a mesma relação de alimento e de veneno. Então Espinosa diz: a ordem das causas, a ordem do entendimento, a ordem imanente da natureza, é uma ordem de relação de composição, ou uma ordem de composição de relações singulares. E cada relação singular tem uma pluralidade de partes que ela subsume.
Participante: isso é uma conquista do entendimento. Segundo gênero de conhecimento.
Segundo gênero de conhecimento. Quer dizer, nós estamos pensando do ponto de vista do segundo gênero. Eu só quero fazer a distinção aqui para você ver como é que funciona na ilusão de consciência, então eu estou aqui no segundo gênero, estou aqui pensando a natureza como ela funciona de fato. Eu estou no plano de composição. Plano de composição já é o modo como a natureza opera, já é um modo imanente, o modo imanente das partes se relacionarem, porque a imanência pura é o plano de imanência. Mas o plano de composição necessariamente se dá no plano de imanência, eles se confundem. Então eu tenho uma relação que compõe duas relações singulares; essa relação é o que Espinosa chama de noção comum. A noção comum é a relação que liga duas relações singulares que, por sua vez, subsumem uma pluralidade de partes; compõe essas duas realidades e, ao compor, forma uma realidade maior. O que ocorre? Ocorre que na realidade maior eu aumento a minha potência de agir e de pensar.
Vamos aqui falar ação e pensamento como corpo e alma para que a coisa se dê ao mesmo tempo; depois fazemos a distinção clara entre as duas coisas; porque no fundo sempre se dá ao mesmo tempo: o que acontece no corpo acontece no pensamento necessariamente, e vice-versa, só que às vezes um chega antes que o outro, às vezes chega antes no corpo, às vezes chega antes no pensamento. Quer dizer, não é que um chega antes num lugar ou em outro lugar; é que a minha atenção capta ou numa forma de expressão, ou na outra forma de expressão – o que Foucault chama de forma de conteúdo, no corpo, ou forma de expressão, no pensamento. Mas há uma distinção formal entre elas, real – porque o pensamento não é o corpo e ambos são autônomos, e é por isso que a distinção é real -,mas ao mesmo tempo não é numérica porque não me divide em dois, eu sou um. Então é isso que é a realidade da distinção formal. É necessário que haja uma distinção formal; então tem uma forma para o corpo e uma forma para o pensamento, um chama forma de expressão e o outro chama forma de conteúdo. Aqui eu estou adiantando Foucault e Deleuze, já.
Participante: é possível concretizar um pouco a ideia de noção comum?
Espinosa vai chegar a um ponto tal que ele vai dizer que até na morte é necessária uma relação e uma noção comum. Então, para o pior dos males que pode acontecer para uma parte, é preciso ter uma comunicação, é preciso ter um ser que é o mesmo. No fundo, o ser vai ser o próprio atributo: uma ideia só se encontra com outra ideia porque ela está no interior do atributo pensamento. É por isso que uma ideia causa outra ideia. Agora, uma ideia não causa um corpo porque um atributo é diferente do outro. E os atributos são autônomos, eles têm autonomia própria, então um não invade o outro. Mas eles se relacionam, há uma pressuposição recíproca entre os dois, porque no fundo eles se comunicam na substância ou no grau de potência. Então o meu grau de potência está no pensamento e no corpo ao mesmo tempo, ele coexiste nas duas formas de expressão – ou nos dois atributos, digamos assim.
Então no fundo a última noção comum, a mais geral – que não é genérica – é o atributo, é essa forma última de expressão. Eu sei que você pediu uma coisa mais concreta e eu te dei a coisa mais abstrata do mundo.
Participante: eu acho que como princípio é isso mesmo e eu entendo: uma ideia se compõe com outra porque necessariamente há uma noção comum acontecendo ali. Ou um corpo com outro corpo. Mas… por exemplo?
Participante: mas corpos compõem sensações comuns. Eu estou tentando fazer o mesmo paralelo que se faz com as ideias. Um corpo não se compõe com outro, fisicamente não seria possível; mas sensações podem ser…
A luz e o olho. Não seria possível a luz afetar o olho, e até o olho ser fabricado, se entre a luz e o olho não tivesse uma relação comum.
Participante: e o que entendemos por relação comum entre a luz e o olho?
É a pura expressão. É a coisa mais abstrata que existe e, ao mesmo tempo, a coisa mais real. É um real abstrato, isso que é o real abstrato.
Participante: é o que faz com que eles se encontrem, não é?
É. Não haveria relação sem essa forma de expressão. Isso é o puro real abstrato. Por que? Porque o olho não vê isso, não é o sensível que capta isso. É por isso que é abstrato. É puro pensamento, isso.
Participante: nem a consciência capta?
A consciência muito menos.
Participante: é só potência.
Olha, é potência de expressão, é a pura expressividade do ser. Isso é a noção comum. A potência já é a essência, já é o princípio. Então você tem a condição na expressão, e o princípio que entra nessa forma de expressão. É sempre as duas coisas: você tem a intensidade e a expressão da intensidade. Ou, em outra linguagem, a profundidade e a superfície. Ou a potência e a efetuação dela. Você tem o virtual e o ato; a atualização já é a expressão de uma potência.
Participante: mas a atualização pode ser captada pela consciência.
Aí a consciência já seria outra, seria a consciência que se desdobra do pensamento ou do entendimento; então vai haver uma consciência do entendimento e vai haver uma consciência da intuição. Mas a consciência, por definição, é sempre secundária. Espinosa diz: ela é ideia da ideia. Mas não é necessário você ter a ideia da ideia para ter uma ideia. A primeira coisa é a ideia e a ideia é puro pensamento. A ideia da ideia já é uma duplicação, já é uma reflexão; a consciência é sempre reflexiva, é sempre secundária. Mas ela não muda nada.
Participante: então há uma expressão que é apenas expressão do ato, que não pode ser capturada pela consciência.
Exatamente. A expressão no fundo é o próprio ato. Quando você atinge a expressão, você conquista o ato para a tua potência, a tua potência se torna uma potência em ato. Aí que você é causa da relação. É isso que é liberdade, em Espinosa: quando você se torna totalmente expressivo, você ultrapassa a representação, ultrapassa a consciência.
Participante: então você tem que eliminar a consciência totalmente.
Não, não é isso. Você elimina a imaginação como pretensão de pensamento ou de organização do mundo, de julgamento do mundo – isso você elimina. Mas a consciência vai ser a consciência desse puro ato expressivo. Aí essa consciência já é a consciência livre, limpa; é aquela consciência pura de superfície que Nietzsche diz que só existe com a faculdade do esquecimento, quando você esquece você limpa a superfície e aí a relação se torna novamente inédita.
Voltando. Acontece o seguinte: o esforço para permanecer na existência – e aqui vem a coisa fundamental, agora é a gênese da consciência – é sempre determinado; no fundo, esse esforço é um poder de ser afetado. Mas esse ser afetado é sempre determinado; ele é afetado – sempre determinado por algum encontro. Então tem um encontro que produz uma afecção em mim, uma modificação em mim, um efeito em mim, e isso determina o meu conatus, o meu esforço, o meu desejo a reagir de tal ou tal maneira. Eu estou investindo aquele efeito, então ele está sendo sobredeterminação, o meu desejo é sobredeterminação. O que é a consciência? Nada mais do que a direção do desejo; é esse efeito que o desejo recebe e que indica – então ela se torna um índice -, ela é indicativa de reação ou de ação. Então é simplesmente a direção que toma o desejo.
Participante: isso é a consciência nobre.
Aí é a consciência já livre. Agora, se eu não sou causa de mim mesmo ou dos meus afetos, eu estou habitando um puro efeito que é exatamente esses encontros e eu me torno o próprio efeito; eu só sinto o efeito e esse sentir o efeito é que aparentemente vira a minha vontade. Por que isso? Porque a consciência ou esse efeito é uma afecção, mas também é um afeto – e aqui a diferença entre afecção e afeto. O que é um afeto? O afeto é o sentimento da passagem de uma realidade maior para uma realidade menor, ou de uma realidade menor para uma realidade maior. Qualquer coisa que me afete de fora – seja um corpo, seja uma ideia – vai aumentar a minha potência de agir ou diminuir a minha potência de agir. Então eu tenho aqui o meu poder de ser afetado, que é necessariamente preenchido sempre – então o meu desejo é sempre preenchido, é por isso que ao desejo não falta nada, o desejo não tem falta. O problema ético é que ele pode ser preenchido só por coisas que diminuem a minha potência, ou seja, só por paixões tristes: coisa que diminui a minha potência imediatamente a expressão do meu desejo é expressão de tristeza, ele é imediatamente triste. Então aquilo já é uma paixão triste. É direto isso, não é que eu estou representando que eu fiquei triste; não, eu já me entristeço.
Participante: e a afecção?
A afecção é pontual, é uma modificação instantânea, pura; e o afeto é a passagem, a partir dessa modificação, de um estado inicial para o outro estado que me deixa mais ou menos potente. Então existe uma diferença entre poder de ser afetado, que é sempre preenchido em mim, e aumento ou diminuição da potência de agir. Então há uma variação. Deleuze, no final desse livro Espinosa e a filosofia prática, vai ligar essas noções a duas noções medievais chamadas amplitude e latitude, que é você levar ao máximo e ao mínimo a potência de agir. Aí é uma questão de velocidade dos encontros dos elementos no corpo e de aumento máximo de potência de agir e de pensar.
Participante: mas o sentimento é uma ilusão de consciência?
Não, o sentimento não. O sentimento é real.
Participante: se eu atribuo ao outro corpo o fato de eu ter me expandido…
Aí é ilusão.
Participante: então. Mas daí advém um sentimento.
Sim, aí começam os falsos sentimentos. Aí Espinosa, inclusive, no livro 3 da Ética, vai fazer um encadeamento terrível das paixões tristes; como é que a partir do sentimento de tristeza eu identifico a causa e a ilusão de consciência, o que ela faz? Se eu tenho um sentimento de diminuição ou de tristeza eu identifico a causa da minha tristeza na causa final do outro; aí eu descubro o outro como sendo a causa. Aí eu vou fazer o que? Eu vou odiar.
Participante: mas no amor também. Nesse sentido é um sentimento que é uma ilusão.
É uma ilusão também, se eu atribuo ao outro inteiramente o aumento da minha potência. E esse outro como imagem.
Participante: espera aí, mas não é que o sentimento é falso. O que criou o sentimento pode ser uma ilusão, mas se esta ilusão te aumenta a potência ou diminui a tua potência, vai haver o sentimento. Ele é sempre acompanhando o aumento e a diminuição.
Há um sentimento real sempre. E há um sobressentimento que é ilusório. Com certeza.
Participante: mas não precisamos do “sobre”, precisamos?
A consciência é que inventa isso. É a consciência do sentimento que é ilusória.
Participante: espera aí, aí temos uma questão de rigor. Vamos imaginar que você projeta tudo e aí se apaixona; o amor não é ilusório. O objeto pode ser, mas o sentimento acompanha esse novo objeto.
Participante: mas o sentimento, se você for pensar como pura afecção, deixa de ser sentimento.
Porque ele se dá naquela relação; você está exposto a determinada afecção, mas quando você congela… então eu estou colocando o sentimento aqui como congelamento. E atribuir, independentemente de onde você esteja: “aquele corpo é a causa do aumento da minha potência”. É disso que estou falando que vem um sentimento.
Participante: o que você está falando é que esse pensamento é ilusório: eu atribuo uma coisa que não está no objeto. O afeto que vem em seguida não é ilusório.
Ele está fazendo uma distinção entre sentimento e afeto. Eu acho que é isso… Que o sentimento é um sentimento de consciência, e que o afeto é afeto de potência.
Participante: pode ser. Mas eu entendi você falando de sentimento como sinônimo de afeto.
No caso eu confundi tudo, aqui.
Participante: eu estava querendo fazer uma distinção.
A distinção se dá a partir do momento em que você entra no pensamento, em que você atinge a causa; e você vai ver que não pode a causa ser exclusiva do objeto, a causa é sempre uma co-causa, uma co-operação, uma co-ordenação; existem duas partes no mínimo – que já são plurais – que se encontram, e ainda tem uma relação como noção comum. Então isso tudo faz parte do conjunto. Quando você apreende isso, aí você está no afeto puro, você não está mais no sentimento ilusório de consciência. O sentimento é real; agora, existe uma ilusão projetada no sentimento pela posição de consciência.
Vamos ver se fazemos novamente a gênese da consciência a partir da afecção. O que dá a ilusão de continuidade? É exatamente o fato de que, no encontro, eu tenho aquela modificação, aquele efeito que eu tomo como sendo uma imagem, uma consciência ou um efeito; mas esse efeito continua, na medida em que eu vou diminuindo ou aumentando a minha potência de agir. Isso eu sinto em mim, isso é real. Então a consciência, no fundo, é uma consciência transitiva, é uma consciência de passagem, é a consciência do próprio afeto – eu tenho a consciência do afeto. Agora, eu não tenho a consciência da causa do afeto. Então eu tenho a consciência do afeto, eu tenho aquele sentimento – ele é absolutamente real. Então aqui não tem ilusão ainda, eu tenho simplesmente um sentimento mutilado, ele não é inteiro, não é toda a realidade; ele é uma parte da realidade, é como eu estou sentindo naquele momento, é como o meu corpo está e como a minha alma está, são estados de corpo e de alma que sentem daquele modo. Isso tudo é real, não tem erro nenhum aí. É real mas é parcial.
Participante: mas é um sentimento que sofro ou um sentimento que sinto?
Antes de tudo você sofre.
Participante: então é pathos.
É pathos. Sempre é uma potência de ser afetado, sempre é.
Participante: agora, a questão da liberdade, de ser causa…
Aí já é fazer do pathos um athos. Aí já entra o segundo gênero de conhecimento. Porque a consciência está no primeiro. Se atinge o terceiro, você está na velocidade absoluta. Senão você está só na relação, você está só na noção comum, só na expressividade.
Participante: isso é liberdade para Espinosa.
Isso é liberdade para Espinosa, quando você atinge o segundo e o terceiro gênero. Então o que ocorre? A minha consciência tem a sensação de continuidade; é por isso que eu a identifico com a minha vontade. A vontade, no fundo, é o efeito que se cola o tempo inteiro à passagem; essa passagem é contínua, eu passo o tempo inteiro de um estado para outro. E eu me colo nisso, então eu acredito que eu sou contínuo, é isso que me dá a ilusão do senso comum – eu tenho um único sentimento, um sentimento comum. A origem do senso comum é essa: é a consciência que habita o tempo inteiro a passagem de uma realidade maior para uma menor e de uma menor para uma maior – não importa em que sentido, mas são sempre passagens. Então a consciência é transitiva e é contínua; isso me dá a idéia de duração segundo a visão da consciência, e o sentimento de vontade. E me dá também o sentimento de que a vontade é infinita porque eu estou recebendo infinitos efeitos.
Participante: isso cai em Epicuro, não é?
É o mesmo problema de Epicuro – os falsos infinitos, o desejo infinito e sempre a frustração. Por que? Porque eu preciso que aquilo seja preenchido por um objeto, quando é um efeito que está pedindo, como se ele fosse uma causa, que um objeto o preenchesse. Então nunca vai se preencher, vai ser sempre frustrado; então eu vou ter sempre a ideia de punição, que eu acabo projetando – em função da ilusão de uma vontade infinita – como uma duração eterna da alma ou de uma dívida infinita. Aí tudo se encadeia.
Então, voltando: o que você tem é uma consciência sempre transitiva, de passagem, que é causada, é produzida nos encontros de corpos ou de ideias, sempre é o encontro que causa a consciência. Então a consciência é sempre efeito, a consciência é sempre ignorante; o melhor que ela tem é o índice, ela é um índice, ela dá o sinal, digamos assim, para uma primeira determinação do desejo. Então a determinação do desejo é que acrescenta a consciência ao desejo. O desejo é primeiro, a consciência é resultado.
Participante: a consciência é postura, então.
Isso, já é uma determinação.
Participante: é 80% do meu combate.
Aí não sei – se é 80 ou 90 ou 10, isso não é numérico. A questão é que é sempre uma forma expressiva do desejo; mas essa forma expressiva, enquanto é puro resultado, o ato não está na minha potência, o ato vem de fora. Então a minha potência está sem o ato, a minha potência está na impotência, a minha potência está sofrendo ação de fora, a minha potência está inteiramente no pathos – ela é inteiramente apaixonada, é só paixão que tem aí. E como o que é mais provável é eu ter muito mais maus encontros do que bons, eu tenho essa capacidade de ser afetado, ou esse poder de ser afetado sempre preenchido por paixões tristes.
Participante: você falou pathos, athos… e o terceiro? Seria a velocidade absoluta…
No athos você já está nos movimentos infinitos e nas velocidades absolutas. O ato já é movimento infinito e velocidade absoluta. O movimento infinito você liga ao atributo; e a velocidade absoluta você liga à intensidade. Um é canal e o outro é o fluxo. O que o Anti-Édipo chama de cortes e fluxos.
Participante: isso são as condições das causas?
O atributo é sempre condição; e o princípio é sempre a substância ou o modo, a intensidade. Ele é informal, ele é pura potência. Ele tem sempre uma incondicionalidade, porque a maneira de ele se manifestar é infinita ou indeterminada, é plural; então em cada forma que eu entro, se eu estou em movimento essa forma é sempre uma linha. Eu gero outras e outras e outras: eu estou em devir. O problema é eu me fixar em uma delas. Quem fixa? É a consciência. Porque a consciência só recorta imagens e a imagem é o congelamento do movimento.
Participante: tem uma expressão que está retornando nos últimos tempos que é a questão de ser ativo seria não denunciar ou reivindicar uma posição, mas criar, ser o criador.
Exato. Porque no fundo a forma é apenas resultado da efetuação da intensidade. Nietzsche diz: a verdade é uma centelha entre duas espadas. No encontro de duas intensidades, duas singularidades ou dois graus de potência, eu gero uma forma única; se eu penso na forma a priori, eu submeto a essência ou a intensidade a aquela forma, eu gero uma instância de juízo que julga se eu me adequei a aquela forma ou não. Agora, se a forma é mero resultado, ela é pura expressividade; e eu só atinjo a pura expressividade porque eu sou capaz de afirmar plenamente a minha intensidade. Então eu atinjo a pura expressividade. A afirmação, o ato e a causa de si é a mesma coisa. Eu jogo o ato imanente à potência, ou seja, aquela forma não é um limite que limita a minha potência – ao contrário, aquela forma é até onde a minha potência foi. Ela foi ao extremo porque eu a afirmei ao extremo, mas esse extremo ainda não é um limite porque a partir dali eu continuo crescendo. Porque aquele extremo gera a submergência no acontecimento e o nascimento de outro acontecimento. Quando emerge outro acontecimento é sinal que outra composição se fez.
Participante: a cada segundo uma nova forma.
Isso. Então é uma forma fulgurante, flutuante, em movimento; não é uma forma que aprisiona, que fecha, que congela. É sempre uma forma fractal, não é uma forma que você tem um ponto de vista que unifica, não tem nunca o ponto de vista que unifica – a unificação é uma ilusão de consciência, quando você recorta uma imagem e acredita que essa imagem tem uma unidade porque ela vem de um indivíduo. Eu vejo o corpo como um indivíduo; aí essa unidade individual da imagem me dá a ilusão de que ela é una; mas na realidade essa imagem una, que me dá a ilusão de uma forma total e unitária, é sempre fractal, na medida em que eu a uno com a potência que a causou. Porque a potência que a causa a abre para faces infinitas, ela se torna multifacetada como um cristal. E é uma coisa sempre em crescimento para os dois lados, passado e futuro, em relação aos dois seres em relação – o que você dobra é passado e o que você desdobra é futuro, o que você implica é passado, o que você explica é futuro, o que você comprime ou contrai é passado, o que você distrai ou expande é futuro. E isso se dá ao mesmo tempo; é por isso que o devir é um zigue-zague simultâneo – entra e sai ao mesmo tempo, eu me torno maior e menor ao mesmo tempo, eu me torno mais e menos sempre ao mesmo tempo.
Eu me torno, não é que eu sou, nunca eu sou; quando eu sou, eu congelei. Eu não sou nada. Eu sou um estado? Não; isso é a consciência que faz, a consciência é que diz que eu sou isso.
Participante: a consciência atrapalha muito; ela congelando estes momentos, o fractal se destrói, a coisa vira unificada e perde o movimento.
Participante: eu me torno um legislador.
Participante: a consciência é juízo.
É juízo. Neste ponto de ilusão é juízo. Então você tem que atingir a noção comum e precisamos ver como é que se atinge a noção comum. Espinosa vai fazer uma seleção entre as paixões; as paixões alegres valem mais do que as tristes, só as alegres é que são interessantes. Mas não basta que sejam paixões; enquanto são paixões, o ato está no outro e é por isso que eu amo apaixonadamente o outro: é porque eu acredito que o outro que é causa do aumento da minha potência. Eu só torno aquela paixão do amor uma ação quando eu tomo parte e me sinto como a causa do processo. É o que os estóicos chamam de quase causa, a duplicação do acontecimento, quando você duplica; o duplo do acontecimento é exatamente esse tomar parte na natureza. É isso que Espinosa diz o tempo inteiro: você é uma ideia, você é um corpo; mas tomar parte, fazer com que essa ideia se torne a causa dos seus pensamentos e com que as relações de corpo sejam a causa das suas ações é tomar parte. Tomar parte é ser exatamente a parte que é divina ao mesmo tempo em que é um modo em você; você é modal mas é divino. Então você não é apenas uma natureza naturada (os cristãos diriam: uma natureza criada); você é uma natureza naturante – a natureza naturante está agindo aqui e agora em você, ela não se separa dos efeitos ou da criatura. É por isso que o ser em Espinosa é completamente imanente. Imanência quer dizer isso: a causa continua coexistindo e agindo com o efeito. O modo é um efeito, mas é causa também.
Participante: apesar dessa imanência extrema, é possível uma comunidade de homens livres? Porque na ideia de comunidade, há coisas que você tem que partilhar e negociar, em função da sobrevivência do que possa ser comunidade. Na medida em que todos são imanentemente vivos, como é que se evita que todos se matem?
A partilha, nesse sentido, já é uma distribuição nômade: você se sente vivo na afirmação da diferença do outro, você não vai negar a diferença do outro ou disputar alguma coisa com o outro. Porque a tua parte já é única, já é implacável, já é eterna; e ela tem que ir ao limite do que ela pode e crescer através desse limite. Então não tem disputa, não tem ideia de morte, não tem ideia de destruição. A comunidade de homens livres é uma comunidade de homens que estão no entendimento e na intuição, as duas coisas ao mesmo tempo; e estar no entendimento e na intuição é saber que as diferenças ou as multiplicidades só têm um sentido, elas devem e podem ser afirmadas. A única obrigação ética é afirmar a diferença, porque o ser é o mesmo. É por isso que o ser unívoco, em Espinosa, é afirmativo, ele não é simplesmente pensado como era em Duns Scot, ele já é um ser real e afirmativo. E em Nietzsche ele vai ter um ganho, que é a questão do eterno retorno, a seletividade. Mas em Espinosa já existe a seleção, porque daí Espinosa vai dizer: quando você atinge o segundo gênero, você vai ser capaz de organizar os seus encontros; então você vai produzir um plano de organização a partir do plano de composição, já não é mais na representação, já é uma razão nômade, um pensamento nômade.
Participante: e o terceiro gênero?
O terceiro gênero é a intuição, porque a essência você só intui. O que é a essência? A essência é a intensidade, a essência é a potência, não é uma Forma; é por isso que é uma intuição: você intui intelectivamente, porque a sensação não pega, a sensação só pega o efeito. Agora, aí tem o pensamento na sensação – o artista está com o pensamento na sensação. Estar com o pensamento na sensação é criar novas sensações, é ser capaz de aumentar a potência de afetar e ser afetado, de modificar e ser modificado segundo novas sensações; você cria novas sensações na relação. É o pensamento na sensação, que é intuição pura. E a intuição não é uma coisa sensível que você diz “eu vou por aqui” e vai tateando – não é nada disso; é como um raio, ela é o que é, não tem como você se enganar. É o ser puro que emerge, com seu modo de ser.
Participante: podemos perder o Deus em mim, não é?
A consciência é que mata o Deus em mim. Exemplos banais: a criança acredita desejar livremente o leite da mãe, ela quer mamar e ela acredita que ela é livre; o homem cheio de cólera, cheio de ódio, quer a vingança e então ele decide se vingar, ele acha que, livremente, decidiu e vai lá e se vinga; o medroso ou o amedrontado foge e pensa que é uma escolha dele fugir, então ele decide fugir; o bêbado ou o embriagado acredita que, porque ele é livre, ele pode falar uma série de coisas que se estivesse sóbrio não falaria. Então a bebida causa a tagarelice nele; a questão da alimentação, a necessidade daquele corpo infantil, ter o aleitamento, é uma pura composição de relação, uma necessidade de expansão e crescimento, então tem uma causa real, mas a consciência capta sempre como um livre arbítrio; a fuga é a mesma coisa, é o esforço para perseverar na existência, está ali a causa real, mas a consciência capta como um livre decreto. E por aí vai – a consciência que faz isso tudo o tempo inteiro, a consciência acredita que nós somos livres porque os efeitos se dão de modo absolutamente contingente e ao acaso. Então quanto mais ao acaso, quanto mais contingente, menos relações determináveis eu vejo, eu sinto, eu apreendo; eu não apreendo as determinações, eu não apreendo as causas, então eu penso que aquele efeito é uma entidade livre que produz um monte de atos e de efeitos livremente.
Então essa ideia de liberdade é tanto mais forte quanto maior a ignorância das causas; a ideia de livre arbítrio é sempre uma ignorância das causas. Quanto mais eu entendo, mais eu sinto e entendo que a liberdade é igual à necessidade, não tem nada a ver com livre arbítrio. E o que é a necessidade? A necessidade não é uma predeterminação, não é um determinismo, não é que estava escrito, não é um carma; a necessidade é simplesmente necessidade da potência se efetuar. É essa a necessidade da natureza. É o que diz Nietzsche: uma vez uma força em movimento, é impossível detê-la; melhor acelerá-la, você acelera a força, mas deter a força é uma bobagem imensa. Tudo que gera a morte rápida de um decadente… Zaratustra afirma: “amo aquele que quer a preguiça, mas que quer infinitamente a preguiça, não pela metade; amo aquele que tem sono e quer dormir, mas que adormeça rapidamente e para sempre”.
Por que isso? Porque você libera o ser para outras coisas. Você vê que aquilo é uma linha de abolição, aquilo é uma linha de morte, aquilo é uma linha que sufoca a vida; então acelere logo o processo, ela tem que ir até o final – no final, no limite aquela forma se desfaz e emerge uma nova forma. É por isso que não adianta reprimir, parar, retardar – o melhor é acelerar. E os catalisadores são instrumentos éticos: quanto mais você acelera, mais você precipita as coisas; quanto mais você precipita, mais você libera a natureza. Precipitar e não reter, não retenha nada.
Participante: para que ela se esgote.
Exatamente, porque o esgotamento enquanto morte é uma ilusão; e o esgotamento enquanto potência – que vai ao limite do que pode – gera mais potência. Então aí você a diferença entre um esgotamento de um esgotado, que é um nada de vontade ou sem vontade de nada, e do esgotado que é esgotado por excesso de atividade e que pelo próprio excesso a energia retorna ainda mais poderosa.
Participante: o reconhecimento dessas necessidades imanentes, não a necessidade do ponto de vista da ideia, aumenta as afecções – posso dizer isso? Quanto maior capacidade de afecções, maior a capacidade de potência do indivíduo.
O que é necessário? É necessário eu preencher o meu poder de ser afetado. À minha potência sempre corresponde um poder de ser afetado; mas o meu poder de ser afetado é preenchido pelas afecções exteriores, pelas modificações dos encontros. Se eu estou na ilusão de consciência, eu percebo que essas afecções são livres e eu recuso uma série delas como sendo arbitrárias e tento selecionar outras que seriam boas ou benéficas. Isso para me safar, para sobreviver, porque aquelas afecções me ameaçam. Quando eu mudo, saio dessa ilusão de consciência e entendo o que é comum na relação, eu entendi o primeiro plano da causa, eu atingi a causa; e quando eu atinjo a causa, eu vejo que a causa não está nem em mim nem no outro, a causa é o entre, é um plano de composição que se expressa na relação. Quando eu atingi essa comunidade, eu percebo que aquilo era necessário. E se eu atinjo esse elemento comum, eu aumento a minha potência de pensar, de agir ou de reagir; então se eu entro no necessário, eu aumento a minha potência de agir e de pensar. Claro. Então: quanto mais necessidade eu perceber na natureza, mais liberdade eu tenho.
Participante: então quanto mais você tem consciência de que a relação está no entre, mais você sabe que dependendo da maneira como você se coloca, você define o …
O entre. O entre muda. E por isso que uma relação com um ser é sempre diferente da relação com outro ser. Por exemplo, amei na vida de um jeito tal; aí eu vou amar de novo. Para o homem de consciência voltam sempre as marcas, aí nunca consegue se entregar de fato. Ame de fato, plenamente, se entregue verdadeiramente, porque aquela relação é absolutamente única e ela vai revelar atributos em você que não existiam em qualquer outro ser. Qualquer relação é sempre singular; por isso todas as relações são insubstituíveis; quando você atinge o insubstituível você ultrapassa a representação, a equivalência, a troca – aí não tem mais troca, não tem mais o que trocar: é único, como é que você vai trocar? No entanto, você compartilha.
Participante: O último tango em Paris, não é? Só existia aquela relação quando eles não tinham nenhuma referência ao passado.
Participante: quando o passado invade é que acaba a relação.
É por isso que os estóicos é que têm a sacada genial: a espessura mínima do presente é onde a liberdade se dá e traz todo o ser; não é que aquilo é uma opção e eu estou excluindo as outras todas, é naquela espessura, naquele toque mínimo, não tem nem passado nem futuro, que eu trago o ser inteiro na mais plena intensidade. Essa é a singularidade da relação.
Participante: volta a uma coisa bem simples: que nada pode estar duas vezes no mesmo ponto e ao mesmo tempo. Toda hora é outra, cada mínimo grão.
E ao mesmo tempo é o mesmo, é uma coisa paradoxal. Por que é o mesmo? Você tem uma essência; essa essência tem a mesma quantidade de potência, mas a potência varia segundo a maneira como você seleciona os encontros; então você pode levar a sua potência ao máximo e você pode ficar reduzida ao mínimo. Toda a questão ética é essa. Não é que ao desejo falta alguma coisa, o desejo sempre é preenchido, a nossa potência de sermos afetados sempre é preenchida, só que geralmente ela é entulhada de memórias e de paixões tristes que fazem com que eu acredite que eu desejo algo, um objeto fora de mim, e esse objeto esteja em falta.
Participante: a questão ética também não está naquilo que eu falei – de que se você é responsável pelo que te afeta – porque depende da maneira como você se coloca -, então a questão ética é essa responsabilidade, na verdade, de você se colocar.
É um dom.
Participante: você sempre tem que se colocar ao máximo.
Isso. Você sabe que Deleuze, ao interpretar Espinosa, logo no início do Filosofia prática, diz que existem três virtudes que geralmente pertencem ao sacerdote ou aos ascetas, que o filósofo se apropria como máscara. Só que o asceta usa isso como um meio para atingir Deus, atingir a vida depois da morte pelo ascetismo religioso, ou como uma finalidade moral; e diversamente, no caso do filósofo, tais virtudes são efeitos de produção. Então você tem a humildade, a pobreza e a castidade – no caso de Espinosa, no caso de Nietzsche: homens sem propriedades, por vezes andarilhos, digamos assim. Frequentam muitas vezes pensões mobiliadas. Eles não fazem apologia à riqueza, à honra, ao orgulho, nada disso. Seus modos de vida expressam um tipo de humildade, um despojamento, um ser sem propriedades e sem qualidades fixas – ou ao menos um não se sentir proprietário ou um não querer a propriedade, ainda que possa, eventualmente, servir-se da propriedade, mas quando você faz outros usos com outros modos. E do mesmo modo a castidade. Mas ao contrário dos puritanos ou ascetas que desprezam a vida e o corpo, como diz Deleuze, efeitos de castidade em prol de uma causa demasiado sensual, que se opõem à castidade do moralista, efeitos de pobreza em prol de causas demasiado ricas, que se opõem à pobreza da falta, e efeitos de humildade em prol de causas demasiado orgulhosas, que se opõem à humildade do fraco. A ponto de você, ao atacar o filósofo – como quiseram atacar Espinosa – ver que é apenas um corpo frágil ou um envelope casto, pobre e humilde, que torna-se com essas máscaras um templo por onde atravessa uma Grande existência, demasiado poderosa, rica e sensual. Por isso não se atinge o essencial da vida do filósofo ao atingir seu corpo. Por isso torna-se inatacável, implacável, imperceptível. E isso estimula ainda mais a raiva impotente. Por que? Porque ele faz do corpo um templo; o corpo é apenas uma casca. O corpo acaba sendo um instrumento, uma pedra lapidada; ele é lapidado e, quanto mais ele é lapidado, menos propriedade ele precisa, menos orgulho ele precisa, menos se apropriar sexualmente dos objetos ele precisa. Ele atinge um elemento e a vida se passa com ele, a vida é que se apodera dele quanto mais despojado ele for. Então o despojamento é exatamente a condição da potência: ele se torna cada vez mais potente ou poderoso quanto mais ele se despoja, quanto mais ele abre o seu ser.
Participante: mas é muito louco esse paralelo entre o filósofo e um monge, por exemplo.
O monge renuncia à ação, o monge renuncia às composições.
Participante: mas a finalidade é a mesma.
Não, de forma alguma – é exatamente o contrário. Com esse tipo de filósofo da imanência, ocorre isso como um efeito, ele não precisa de propriedades, ele não precisa de riquezas materiais.
Participante: porque ele concluiu que não precisa.
Não, é resultado da atividade.
Participante: nesse sentido, é uma finalidade da atividade.
Não, não é finalidade; ao contrário, é um efeito, é um resultado.
Participante: é o que lhe permite ser leve também.
Participante: a energia não é concentrada para esse tipo de coisas.
O que faz um monge? O monge não come, não dorme, não faz sexo, não tem bens… para que? Para que ele se eleve.
Participante: no sentido de domar…
… os bens mundanos, o corpo – se desfazer do corpo mesmo, ele quer se desfazer do corpo e quer ir para o outro mundo, é isso que faz o monge. Então ele usa esses elementos ascéticos para atingir uma finalidade. Ou o ser moral: ele se torna um homem de bem, um homem moral com o outro, quando ele usa isso como uma finalidade, ou seja, a finalidade de dominar as paixões – as paixões seriam a causa do mal. O filósofo, nesse caso, não se serve disso como finalidade nem como meio, isso vira um puro efeito. Então é diferente. Na realidade, ele é suficientemente rico, é suficientemente orgulhoso ou suficientemente sensual para se desfazer desses falsos objetos, que estavam fora do desejo. Agora ele é absolutamente sensual.
Participante: ele já está dentro. Esta é a confusão da causa com o efeito. Na Palas você deu um exemplo, e essa era toda a minha questão aí para estar falando. Quando se confunde a causa com o efeito e aí essa confusão da causa com o efeito fica fora, tem que trazer para dentro.
Isso. O ato tem que ser o ato da minha potência. E a minha potência é uma parte sempre em relação, não é um solipsismo, não é que a minha potência tem o ato e ele é propriedade dela – não é isso. É aí que encontramos o ser pleno: quando você vê que o ato não é expressão nem tua nem do outro, o ato atravessa tudo, o ato é a pura afirmação. O ato é nômade, ele não é propriedade de um indivíduo, ele é o entre. Então, habitar o entre é que é atingir o horizonte absoluto, sair do horizonte relativo. Por exemplo, você está no meu horizonte; aí vou numa montanha e vejo o pôr do sol; aí eu subo mais alto e o vejo um pouco mais; aí eu subo um pouco mais ou ando de avião e o vejo mais longe ainda. Isso sempre é um horizonte relativo. O horizonte absoluto é quando o teu ser inteiro está naquele limiar, naquela membrana, naquela superfície; atingir o horizonte absoluto – aí você está no ser.
Participante: isso responde àquela pergunta sobre se então seria a destruição. Não, se todos estão livres, estão todos no entre. Então não tem mais destruição.
Aquela história de “a liberdade do outro vai até onde começa a liberdade do um” é ridícula.
Participante: mas acho que naquela pergunta estava a imagem de uma ausência de combate; quando se falava a palavra “comunidade”, estava-se pensando numa situação sem combate. E isso inclui combate.
Combate o tempo inteiro.
Participante: você falou que forma o entre. O atributo é o que está fora e dentro passa…
No fundo, o atributo está dentro e fora ao mesmo tempo. O que é a pele? É como o anel de Moebius: ao circular fora, você entra ao mesmo tempo; então o dentro e o fora são a mesma coisa.
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