Palestra de Luiz Fuganti na Universidade Eduardo Mondlane
Departamento de Sociologia
Maputo, Moçambique, 02/08/2005
Apresentador: Talvez eu deva dizer duas palavrinhas. Esta palestra enquadra-se no início do novo semestre no departamento de Sociologia para talvez darmos um pequeno impulso naquilo que nos espera nesse semestre. Com o apoio da Fundação Universitária, na pessoa de Luís Cezarilo, conseguimos convidar estes ilustres professores. O professor Luís, desse departamento, fará a apresentação do Luiz Fuganti. Estamos congratulados por ele ter aceito este convite. Aqui na sala estão presentes estudantes e docentes de Sociologia.
Luís Cezarilo (Depto. Sociologia da Universidade Eduardo Mondlane): Quiseram nossos pais que tivéssemos o mesmo nome, não é? Mas o Luiz Fuganti é fundador da Escola Nômade de Filosofia de São Paulo. Ministra lá cursos e quem quiser visitar, a Escola tem um site na Internet onde se pode encontrar quase duzentas aulas transcritas de Filosofia, proferidas por ele. Não vou me alongar por mais tempo, ele tem vários trabalhos em livros como, por exemplo, Saúde, desejo e Pensamento; Ética como Potência e Moral como Servidão; A Questão da Formação do Pensamento Ocidental, entre outros. Portanto, eu vou deixar aqui para que ele possa nos apresentar seu tema de hoje que é Política e Ética. A professora Mari, que é do nosso departamento e faz parte da mesma equipe de trabalho do Brasil que está visitando Moçambique, é livre docente – para nós, catedrática – da Universidade Federal de Goiás. Pertence a várias associações da Academia Brasileira, já me disseram, no Brasil. Tem vários grandes estudos antropológicos desenvolvidos enquanto observação participativa, como com os kalungas no Brasil, tem quatro CDs de antropologia com tese de dezesseis horas de pesquisa em torno de seu trabalho de campo, mas hoje aqui é “estrangeirada”, porque a palestra dela vai ser dada no outro lado, no departamento de Antropologia que também já está agendada. Portanto, Luiz, aqui está sua platéia, para ouvir sobre a questão de Política e Ética que vamos tratar agora.
Luiz Fuganti – Bom dia. Finalmente estou aqui em Maputo, ao lado de Luís Cezarilo, do Samuel e da Mari Baiocchi e com essa platéia atenta, para falar de questões que, na verdade, envolvem todos os povos e não é apenas uma questão de uma filosofia radicada num território, como o Brasil, ou uma filosofia européia ou americana ou africana, digamos assim. Nossa filosofia toca algo fundamentalmente intimo a uma espécie de natureza humana. É também uma questão complexa falarmos da natureza humana, mas enfim seria um ponto talvez problemático a partir do qual nós pudéssemos desenvolver certos temas que têm gerado muitos descaminhos para a humanidade, para as sociedades, ao mesmo tempo em que se criam soluções muitas vezes artificiais e abstratas, como falou o meu amigo Luís, que talvez fizessem parte de um tipo de filosofia que nós não fundamos. Eu só acredito num tipo de abstração, que é a abstração da não existência que segue sendo real. É uma questão difícil, talvez, mas aos poucos a gente pode ir desdobrando isso que, em filosofia, chamamos de virtualidade. Existe um campo virtual e um campo existencial. O campo existencial é o campo, digamos, da concretude, no qual a natureza se efetua do ponto de vista do corpo e do ponto de vista do pensamento também. Há uma espécie de existência que um filósofo holandês chamado Spinoza designava de natureza naturada. Mas há uma outra dimensão não existencial, mas nem por isso menos real – talvez até mais real – que é uma dimensão que esse mesmo filósofo chamava de natureza naturante ou o que nós chamamos de virtualidade. Há um campo virtual que, na verdade, é o objeto privilegiado da filosofia. A filosofia não trabalha diretamente com o existencial e talvez, por isso, os filósofos sejam tidos como pensadores abstratos. Mas a abstração do virtual é, na verdade, o acesso a uma dimensão real da natureza que só é abstrata na medida em que a sensibilidade não alcança essa realidade. Não é pela sensibilidade que a gente apreende a dimensão virtual, mas é pelo pensamento e pela própria realidade do pensamento, não por uma dimensão imaginária da realidade humana, mas de uma potência real de apreender essa dimensão que nos constitui, que nos faz viver, que nos faz pensar, que nos faz agir, reagir, ou seja, que nos faz criar maneiras de ser. Então, essa dimensão, talvez faça diferença entre a filosofia e as ciências, uma vez que as ciências trabalham com o campo existencial, com o campo funcional daquilo que se estabelece no campo social, econômico, histórico, político, religioso, nacional, enfim. O que distingue, portanto, essa abordagem filosófica, a partir dessa pequena provocação do meu amigo Luís, é que o pensamento filosófico tem ou visa diretamente os princípios e as condições da existência e não a existência mesmo. A existência é uma conseqüência desses princípios e dessas condições. E desse ponto de vista, o nosso tema Política e Ética ao ser intencionalmente invertido pelos nossos amigos – porque inicialmente era Ética e Política – me fez pensar num estímulo de enfoque, onde a Política antes da Ética, ao menos como estratégia de exposição, nos faria então abordar primeiramente o que é essa dimensão política para depois falarmos do modo como a ética se insere nessa dimensão.
Então vou começar fazendo uma breve distinção e ao mesmo tempo é uma distinção radical entre a dimensão política que conduz ao poder e a dimensão política que conduz à potência. Então vamos fazer uma diferença de natureza entre potência e poder. Ao mesmo tempo, do ponto de vista da ética, nós vamos fazer uma diferença de natureza também radical, uma vez que é uma diferença de natureza, não apenas de grau, entre ética e moral. Vou só sinalizar inicialmente a questão ética, para abordar a questão política e já retornar à questão ética. A ética é um pensamento não da perspectiva do pensamento ocidental. Ou seja, o que estou falando aqui não é de uma perspectiva ocidental, ao contrário, implica uma desconstrução do pensamento ocidental.
Estou me referindo a ética usando um sentido que não é exatamente o que o ocidente na maioria das vezes entende por ética
Porque o ocidente confunde as esferas ética e moral. Estou fazendo aqui uma distinção do ponto de vista de natureza. Ética é uma capacidade seletiva que a vida tem, uma capacidade de construir filtros, válvulas, que permitem que certos encontros sejam afirmativos e ativos e que os encontros passivos e negativos sejam transmutados. Então a ética é uma capacidade seletiva que liga a nossa existência a nossa própria potência. A ética diz ‘ligue a vida ao que ela pode’. A moral diz outra coisa. A moral se funda num dever ser. O dever é primeiro para a moral. Para a ética, a potência é primeira. O dever enquanto princípio fundante dos comportamentos implica uma dimensão separada da natureza, uma dimensão separada da vida, uma dimensão separada da própria potência. A moral reza: a vida deve. O que ela deve? Não importa tanto o que ela deve, importa tanto que ele deve de alguma maneira. A vida deve sempre a uma forma verdadeira e moral de nos comportarmos. Ou seja, a moral liga a existência à obediência. Isso é fundamental. O efeito da moral é sempre esse. A vida, de alguma maneira, é referida a um referente privilegiado, a um ideal, a um valor que é sempre superior à própria vida. Então, essa dimensão moral que vamos articular depois com a dimensão do poder é necessária a todo tipo de poder. Não há poder sem a instauração de um dever, de um dever ser. Então, a natureza não é o que pode, é o que deve. Ou melhor, a natureza que pode é inferior à natureza verdadeira, que seria uma natureza ideal. Essa natureza ideal seria o horizonte privilegiado dos destinos humanos. Nós aqui estamos desafiando e desconstruindo isso tudo, na medida em que nós acreditamos, sentimos e pensamos que a vida não deve a nenhuma instância fora dela o seu princípio fundante e a sua condição. A vida é fundada na própria natureza. A natureza não teria consistência se a vida não tivesse uma auto-sustentabilidade. Essa idéia de auto-sustentabilidade é essencial para a gente entender o que é autonomia, autodeterminação, auto-regulação, soberania, que é uma idéia tão em voga e ligada à idéia de independência dos povos. Geralmente as soberanias ocidentais vêm mascaradas de condicionamentos ocultos. Então a nossa questão é discutir a natureza do que se chama soberania; discutir a natureza do que se chama identidade nacional, identidade étnica, identidade de uma cultura. Ou seja, entrarmos na condição e na natureza da unidade que faz tudo crescer ou faz tudo se submeter. Existem duas maneiras de crescer. Uma delas é quando a gente constitui relações de poder que demandam uma unidade capaz de integrar as várias dimensões do poder, em torno de um Estado, em torno de um deus, de uma religião, de uma razão, de um objetivo finalista, seja lá o que for. Existe então uma unidade que aparentemente faz crescer, mas faz crescer o que? O poder. Mas o poder só cresce a partir de uma condição: separando a vida do que ela pode. O poder só cresce gerando impotência. O ocidente está aí para nos demonstrar isso, com os mais variados exemplos, ao longo de vários séculos. Ou seja, aquilo que se chama desenvolvimento subjetivo e objetivo; desenvolvimento espiritual e corporal; desenvolvimento material; desenvolvimento técnico; desenvolvimento científico, no Ocidente, pressupõe um esmagamento da vida, um esmagamento das diferenças. Ou melhor, uma submissão e uma captura das diferenças, das singularidades que constituem a potência de qualquer vida. Ou seja, o poder cresce às custas da impotência das diferenças. Mas o poder não funciona simplesmente desse modo. Ele não nega, a priori, para acabar com a vida, pois ele precisa da vida. Não há poder sem a vida. Mas de que modo ele precisa da vida?
“O poder precisa de uma vida enfraquecida, ele precisa de uma vida que abaixou a cabeça. Ele precisa das vidas servis que desejam ou esperam um futuro melhor. E o futuro melhor de alguma maneira é provido pelo poder. Eles nos oferecem vantagens para que a gente ceda ou conceda ou se conforme com uma separação da nossa própria vida que não sabe mais encontrar o princípio de realização própria, mas encontra sempre a sua integração, sua integridade, sua “potência” (entre aspas), sua capacidade oferecida ou constituída a partir de uma determinação extrínseca a si mesma, a partir de uma determinação exterior. E a melhor maneira do poder funcionar é sempre por sedução. A violência, só quando necessário”.
O poder não lança mão da violência se não for necessário. A violência dele é mais sutil. A violência dele é por sedução. Assim é a publicidade; assim é a mídia, a televisão; assim é o crédito internacional; oferta de ajuda é sempre por sedução, por oferta, por piedade. A piedade é o amor. Sim, é o amor, mas o amor que esconde um ódio fundamental. A piedade é o amor pela vida fraca. Um amor pela vida submetida, sem o que o poder não se estabelece. O poder precisa das vidas capturadas. O poder tem uma maneira eficaz de produzir aquilo que ele demanda: as energias, as acumulações, as separações, os “individualismos”, ou seja, ele precisa da moral ou, de uma maneira, ele precisa de uma instância de julgamento, ele precisa de um lugar de julgamento, precisa construir o lugar da verdade, o lugar da ciência, o lugar até da filosofia. Aliás, a filosofia, nesse caso, foi muitas vezes conivente com o poder. Alguns filósofos já denunciavam que muitas vezes que a filosofia foi funcionária dos piores Estados. Assim, não só as ciências, mas a própria filosofia foi refém desse processo e serviu a muitos poderes. E a nossa questão fundamental é: se o poder precisa das vidas, das potências, das energias, ele precisa também criar mecanismos de captura. Mas não há mecanismos de captura, uma vez que não há poder sem as nossas vidas e sem também, ao mesmo tempo, a nossa própria cumplicidade.
O poder é sempre difuso: micropoder e micropolítica
“Então o que eu quero trazer aqui é que nós também somos cúmplices do poder. Não há poder que se exerça abstratamente. Ele se exerce sempre sobre nossos corpos e sobre nosso pensamento. Há um lugar e um tempo do exercício de poder. E mais do que isso: o poder não ocupa um centro, o poder é sempre difuso”.
Há um filósofo francês chamado Michel Foucault que revolucionou muito essa questão, essa visão, inspirado em Nietzsche, dizendo que o poder é sempre difuso. O poder, na verdade, é micropoder. Desse ponto de vista, nós vamos falar também de micropolítica. E ele é micro, porque se exerce na nossa sensibilidade, na nossa estética, no nosso corpo, nos nossos gestos, nos nossos movimentos, nas nossas ações e paixões físicas e também se exerce na linguagem que veicula o pensamento. Então, a própria linguagem se constitui uma forma de captura e nós, sutilmente, somos capturados e falamos “em nome de” ou ocupamos o lugar legitimado pelo poder que pode ser a própria academia com o lugar da ciência, o lugar da autoridade intelectual, muitas vezes. Vamos falar de modo concreto. O capitalismo inventou a ciência da qual ele precisava. Uma vez que estamos aqui envolvidos com as ciências humanas, ciências sociais, nós precisamos fazer uma autocrítica desse ponto de vista e vermos, até que ponto, nosso pensamento científico não é conivente com essas práticas de poder e não reproduz as dicotomias e as separações das quais o capitalismo necessita ou essas formas novas de poder necessitam. Então, as ciências são colaboradoras desse ponto de vista de constituição, de regulação e de conservação desse poder através de um discurso chamado científico. Ou seja, as ciências desse ponto de vista pressupõe o lugar da moral. E a moral é sempre a crença de um dever ser: o pensamento ‘dever ser’, a sociedade ‘deve ser’ isso, ‘deve ser’ aquilo. E não há coisa que o poder saiba fazer melhor. Sim, a vida deve ser boa, em nome de Deus, em nome de um ideal, em nome da paz, em nome da democracia, em nome do liberalismo, em nome dos aparentemente melhores valores, se fazem sempre as piores coisas. Bush, em nome da democracia, faz o que fez no Afeganistão, no Iraque etc.
E a África, evidentemente, sabem muito melhor do eu, sofreu vários processos nesse sentido. E agora existe o processo de neocolonização que, na verdade, é muito mais sutil do que se imagina, porque ele funciona por micropercepções ou micro-sensibilidades ou micrológicas. Ele é sutil e imperceptível. Ele, na verdade, vem por sedução, vem por amor, vem por uma proteção e um estímulo ao desenvolvimento. Precisamos retirar as ‘sociedades primitivas’ do seu subdesenvolvimento, em nome do desenvolvimento humano, em nome do bem, em nome da provisão, que é capaz de gerar felicidade à vida humana.
Nesse sentido, a questão que eu trago como essencial é que sempre que se fala em nome de, sempre que se reapresenta uma realidade, essa realidade já está submetida a esse lugar da representação. Então, de novo, eu vou dizer aqui: não há poder que abra mão desse lugar. O poder constitui a representação, enquanto condição de seu exercício e da sua integração, porque sem a representação ele seria difuso. Então, a integração se dá através das formas e principalmente das formas discursivas. Existe a forma discursiva e a forma da sensibilidade. A gente pode dizer a forma de conteúdo do corpo, das paixões e das ações, e há a forma de expressão do pensamento na discursividade. Existe uma forma do visível ou do sensível e uma forma do dizível. É por aí que o novo poder, o neocolonialismo, chega sutilmente. E o que acontece de fato? O que acontece de fato é produção.
“Só quem acredita em representação é quem está submetido à representação. Nem o poder acredita em representação.O poder sabe que tudo é produção. Então o poder vai produzir a alma que lhe interessa e o corpo que lhe interessa”.
O poder vai produzir o corpo do trabalhador, o corpo do funcionário, o corpo do aluno, o corpo do professor, o corpo do psiquiatra, o corpo do doente mental, a alma e o lugar também. A escola, a prisão, o quartel, a empresa, etc. Então, tudo hoje funciona por micropoderes e micro-saberes que se escondem sutilmente nas formas expressivas e nas formas de sensibilidade. Mas a velha moral, desde Sócrates, Platão e Aristóteles segue imperando. Ou seja, Sócrates não é coisa do passado, Platão não é coisa do passado. Platão é mais nosso do que se imagina. Eu vejo muita gente, em nome da crítica à escravatura, ao colonialismo, ao chibalo, ao neocolonialismo, a outras formas de captura, em nome disso, lançar mão de um platonismo idealizado na figura do bem. É o próprio Platão que nos ensina que a natureza não tem esse ideal nela mesma; que a natureza não é auto-regulável; que a natureza precisa da regulação, mas, ao mesmo tempo, ela vai encontrar a regulação num ideal fora dela, na transcendência. Então, é o próprio Platão que nos ensina que há um ideal superior à vida, que a vida deve se submeter a esse ideal. Hoje em dia, alguém pode dizer que a figura central não é mais o Bem, a figura central agora é a lei. Antes de Sócrates e Platão, a lei era uma conseqüência do Bem.
O próprio Sócrates bebe a cicuta e morre, acreditando que a lei era delegada do Bem e, por isso, a decisão da cidade que se serve da lei para condená-lo à morte. Ele era um crente na lei como representante do Bem, um moralista. Na modernidade, essa relação se inverte. Essa inversão é inaugurada fundamentalmente por Kant. Com ele, a Lei é que se torna primeira em relação ao Bem. Já se vislumbrava um esboço dessa questão em Hobbes, mas é em Kant que a Lei passa a ser constitutiva da própria Forma ou essência do Homem, se torna primeira. É esse acontecimento que Nietzsche nomeia ‘morte de Deus’ ou a ‘morte do ideal’. Entretanto, Nietzsche não acredita nessa morte. Porque ele sabe que o lugar ocupado por Deus foi imediatamente ocupado pelo homem moral. Na verdade, são os valores humanos que ocupam agora o lugar vazio deixado pelo desaparecimento dos valores divinos.O homem, uma chamada forma homem. Mas essa forma homem não é o que a gente quer ou gostaria do homem, é apenas uma nova forma de o homem se carregar a si mesmo e soldar seu desejo a Lei. O que queremos não é um homem verídico, formal, legal, mas um homem potente, ligado ao que pode. O que queremos é liberar as forças do homem. Mas há uma forma do homem que se estabeleceu, a partir do século XIX, e que serve como uma luva para o capitalismo emergente. É que o capitalismo precisa instalar no indivíduo o sujeito. Tudo se funda agora no sujeito. A ciência não se funda mais numa objetividade ideal, muito menos numa objetividade material; a ciência se funda agora na subjetividade. E essa subjetividade nada mais é do que a lei primeira em relação à figura do Bem e em relação à figura de Deus. A lei se confunde com o próprio homem, tanto é que Kant vai dizer que o sujeito legislador é que é livre. Mas o sujeito só se torna legislador, na medida em que ele se confunde com a pura forma de lei. No conteúdo é sempre indeterminado. Digamos assim: o conteúdo é sempre culpado, porque o conteúdo nunca cabe nessa forma ideal de lei. É Kafka. Quem já leu O Processo, de Kafka, vê que o autor vai fazer a mais bela desmontagem do sistema judiciário moderno. A culpa é a priori. A natureza é devedora a priori. A vida deve se guiar por um referencial ideal exterior a ela mesma. Então eu dizia que, já Platão, que vai elaborar e construir o mais puro plano de transcendência que faz com que a vida seja gerida a partir de um ideal. Esse platonismo vai ter uma aventura, a ponto de o ideal se introjetar em nós. E o próprio Estado está no interior de nós. O Estado agora em nós se chama eu, se chama sujeito.
O que trago aqui, então, é uma provocação sim. Não se trata de jogarmos fora o sujeito, não é isso o que estou dizendo. Mas é preciso ver ver até que ponto o sujeito não é um operador do poder em nós. O próprio sujeito, aquilo que eu chamo eu, não é o traidor, o traidor de mim mesmo? Será que não é assim que se faz o neocolonialismo? Será que não é assim que se faz, digamos, a produção de alma e de corpo em nós? Não são as almas que o capitalismo coloniza de fato? A mercadoria mais sutil e mais essencial do capital não é o dinheiro, mas a produção de subjetividade, sem a qual o dinheiro não se concretizaria. A produção de subjetividade é fundamental. E isso vem então nos dar uma dica em relação à questão do poder e da potência. Eu poderia aprofundar isso mais, mas aqui vou precisar sintetizar e voltar à questão da potência para que a gente possa discutir no debate e a gente pode trabalhar um pouco mais isso na seqüência.
Então o poder necessita de uma subjetividade em nós. O que se chama de egoísmo… Bom, hoje em dia se vê muito isso em Moçambique. Um neoliberalismo entrando aqui. Na verdade não é nem neo, mas o próprio liberalismo que está entrando agora. É neoliberalismo para nós que já sofremos isso de outra maneira. Mas, a partir da chamada segunda república, se assistiu a uma necessidade de produzir acumulação, porque se imagina que o desenvolvimento econômico só se dá por acumulação. Mas a acumulação só acontece na medida em que a propriedade é um valor fundamental. E a propriedade só acontece na medida em que há um corte, uma barreira entre as relações sociais e o indivíduo. O indivíduo que, do ponto de vista da natureza, é imediatamente social, se separa da relação social e é mediado pela instauração do sujeito nele mesmo. Então, aquele que Kant chama de pessoa, não de indivíduo, porque indivíduo é uma dimensão física nossa e pessoa é uma dimensão moral e lógica, mas, então, essa dimensão moral e lógica é necessária a todo desenvolvimento de poder. É o que nos separa, na realidade, do que podemos e aparentemente nos oferece uma nova ligadura, uma nova ligação: “ah, mas sua vida está novamente ligada ao que você pode”, mas é porque através do sujeito, da subjetividade que você conquista reconhecimento, que você conquista o saber, que você conquista o próprio poder. E assim é que realmente funciona. Você de fato acumula mais dinheiro, você de fato acumula mais posições, mais reconhecimento.
A questão ética se põe exatamente do ponto de vista da natureza e da vida como potência. Há um pensamento real que sabe que a natureza não se sustentaria sem uma dimensão afirmativa. Você poderia dizer: então precisaríamos de Deus para que a natureza existisse e se sustentasse. Pois bem, eu posso chamar de qualquer coisa, o problema é saber o que é essa coisa que sustenta a natureza. Essa coisa que sustenta a natureza eu chamo aqui de uma dimensão afirmativa, sem a qual a natureza já teria desaparecido e nós não estaríamos aqui. Se estamos aqui é porque há uma potência de auto-sustentação, de autoprodução. Então nós podemos ver todos esses seres – uma formiga, uma barata, uma ameba, o sol, uma árvore, um cachorro, um gato, um esquilo – qualquer coisa que existe na natureza existe porque tem uma potência que a sustenta. Todos os seres têm potência e têm uma potência única e singular. Nenhuma potência é comparável a outra potência. Toda potência é plena, na medida em que está ligada ao que pode. Traduzindo em outras palavras, toda potência é uma potência em ato; todo ato preenche necessariamente essa potência. Mas pode acontecer de a potência se separar do que pode. Pode acontecer à vida se enfraquecer, se desqualificar, definhar, entrar num processo de decadência. Nossa questão é: o que faz a vida crescer, aumentar a potência, desenvolver, de modo pleno, sem dicotomia entre o indivíduo e o coletivo, porque o ocidente sempre viveu dessa falsa dicotomia, e isso não existe na verdade, o ocidente concebeu uma separação do homem e da natureza que é pura ficção, mas sem essa ficção o Ocidente não se desenvolveria, é o que diz Nietzsche. Muitas vezes, o falso é uma condição de desenvolvimento da vida. Mas de que tipo de vida? De uma vida que está enfraquecida, às vezes ela precisa de uma falsificação, sem a qual ela não se sustentaria. Bem, digamos que essa ficção fosse necessária para o Ocidente. Por que ela ainda é necessária a nós? Ou será que a gente é capaz de encontrar essa dimensão vital, onde há em todos os seres uma potência que se autodetermina, que é capaz de encontrar um ato imanente a cada relação? Então a questão nossa é a qualidade do ato que determina as potências que formam essas potências ativas e essas potências passivas. Esse ponto é fundamental e eu vou resumir para encerrar, porque aqui eu introduzo a questão das políticas ou da política enquanto instituição pública. Não o que deveria, mas o que a poderia ou pode a política pública se ela encontrar a dimensão ética.
A dimensão ética da política não é a obediência a um Bem. Não é pelo Bem que vamos fazer isso. É uma questão de inteligência, é uma questão de capacidade.
Aquele que desenvolve a inteligência e a capacidade sabe que a afirmação individual jamais vai contra a afirmação coletiva. Mas o capital ensina o contrário, os poderes ocidentais ensinam sempre o contrário: que o indivíduo é perigoso. Já o próprio Hobbes vai dizer que nós vivemos num estado ou que o nosso estado originário é um estado de guerra de todos contra todos, porque a gente acredita que temos um direito natural que deve ser exercido. A civilidade ou o nascimento da soberania moderna se dá em cima de uma concessão de um direito natural em favor de um direito civil que se constitui, na medida em que a gente aceita ser limitado por uma força maior e uma vez que nós – indivíduos – sempre temos um desejo gerador de mal, de nocividade, de falsidade, de guerra, enfim, e nós precisaríamos ser limitados por uma força ou um ideal exterior. O ser humano não é bom em si, porque se trata de saber que homem é esse. Bush é um homem e em nome dos direitos humanos ele faz o que faz. Quem é o homem que diz que tem direito? Quem é o homem em nós que tem esse direito? Será que o direito não esconde uma captura? Será que quando dizemos “queremos direitos humanos”, não estamos nos afundando cada vez mais na escravidão, na servidão, na captura? Então se trata de sair da postura passional e reivindicativa e conquistar uma atitude, uma capacidade de criar, a partir de si, a própria existência e as condições de existência. É isso.
Apresentador: Após a oratória de nosso palestrante que nos fez navegar por vários assuntos, temos mais ou menos uma hora de debate em cima das questões que foram levantadas, mas também pode ser que surjam outras questões que não foram tocadas, mas que vocês gostariam de aproveitar a oportunidade. Vamos interagir para ficar mais interessante.
Participante da mesa: Em primeiro lugar quero dizer que achei a palestra muito interessante. De fato é preciso saber onde somos cúmplices, cada um de nós, no dia-a-dia, daqueles que se acham “poderosos” sobre nós e talvez ver formas de nos privar disso. Mas muitas vezes eu penso nessa relação, obstáculos a nossa coexistência, dos indivíduos e do coletivo. Será que o homem não será capaz de viver sem obstáculos? Mas se tivermos que viver sem obstáculos, como haveríamos de viver? Eu não conheço a lei da selva, imagino. Imagino que na selva serve o princípio do mais forte dominar o mais fraco. Não sei na vida real como deveria ser. Mas esta é a pergunta que me ocorre sempre quando analiso a obra de Thomas Hobbes, só porque em sua noção do conceito de Estado não existe condição de se viver sem Estado. Mas do ponto de vista filosófico, como seria viver sem Estado? Como seria esse grau de liberdade que teríamos, não mais como indivíduos, mas como pessoas e o coletivo, num grau de liberdade muito maior?
Participante 2: Foi um prazer recebê-lo em nossa faculdade, em nosso departamento. O senhor colocou uma série de pontos e vou tentar, mas talvez não consiga ser tão instigante quanto, mas suas colocações me fizeram pensar em alguns pontos. Um deles foi sua definição de natureza. Me pareceu um pouco problemático, eu gostaria de que ficasse um pouco mais claro o que o senhor está entendendo por natureza. A relação entre Estado e poder. Uma hora eu estava achando que o senhor estava falando de poder de uma forma abstrata; outra hora comparava o poder ao Estado. E essa relação a gente sabe que é uma relação frágil, linear. Ao mesmo tempo sua colocação sobre o poder como se fosse uma entidade que não fosse feita de homens e homens em relação e de homens em correlação de forças. Então me pareceu que o poder fosse uma entidade vazia de indivíduos que estão lá e têm um objetivo – e aqui estou falando do poder Estado e não o poder que aqui está sendo exercido na sua palestra em relação a nós. O poder que meu marido tem sobre mim é o que eu permito que ele tenha sobre mim. Então que poder é esse que está se falando? É um poder de Estado, é o poder nação, se se pode falar em Estado nação, enfim. Mas esse poder é feito de pessoas. Isso me pareceu um pouco fluido, vazio de conteúdo nesse sentido. Um outro aspecto que o senhor levantou e se referindo a Moçambique, ao processo de desenvolvimento que a gente está percebendo aqui, é como sair da pobreza e que tipo de desenvolvimento que se quer. Eu acredito que o senhor tenha dado um enfoque no sentido neoliberal ou liberal de desenvolvimento, mas me pareceu que essa saída da pobreza seria quase que natural, pensando na natureza ou no significado de natureza que o senhor usou como se fosse uma promessa que deve vir. Então achei essa relação um pouco perigosa entre pobreza e desenvolvimento, entendendo que o desenvolvimento que o senhor colocou foi o desenvolvimento proposto por uma política econômica e liberal. Da mesma forma o senhor coloca que esse poder é representação, enquanto representação ele é produção. Ora, a gente sabe que representação é aquilo que nos auxilia e que medeia os indivíduos da realidade, nos ajuda a traduzir a realidade, que nos ajuda a apreender a realidade. Então, se poder é uma representação, a vida é uma representação. Nós somos aqui uma representação. Nós aqui não existimos, nós aqui somos uma ficção. Mais um ponto: essa contradição entre coletividade, entre vítima e algoz, ontem falei para alguns alunos, aqui tem Zilman, que é um grande sociólogo, é uma falsa dicotomia e a filosofia já nos mostrou isso. Nós temos em nós, indivíduos e coletivo, a vítima e o algoz. Essa relação eu achei um pouco linear. Pelo tempo, a gente sabe, mas eu achei muito linear. E, por último, a questão dos direitos humanos. Sou uma militante da área de direitos humanos, sou comprometida na área de direitos humanos, mas nem por isso não tenho críticas em relação à própria construção dos direitos humanos e sua efetivação no cotidiano. Dizer que os direitos humanos é uma captura, acho perigoso. Entendi a abordagem que o senhor quis dar, mas se torna perigoso colocar num ambiente sem um pouco de reflexão, na medida que são princípios fundamentais, são universais, não são ocidentais. Aí entra uma discussão do que sejam os direitos humanos, mas reduzi-los à captura, enquanto eles são instrumentos para muitos povos e de muitas pessoas de liberdade e de justiça. Então eu acho um pouco perigoso colocar da forma como o senhor colocou. Obrigada.
Mesa: Eu vou colocar o Luis Cezarilo também para responder a essas provocações da professora e do professor Luiz Fuganti.
Luiz Fuganti: … o próprio Hobbes pressupõe um estado de natureza do homem que necessariamente seria um estado de selvageria, um estado de guerra de todos contra todos. É necessário sair desse estado de natureza, em direção a um estado de civilidade, na medida em que se faz uma concessão, se abre mão, digamos assim, dos interesses individuais que entrariam em conflito com o interesse coletivo ou do outro. Ou seja, o meu desejo pode aniquilar o do outro. Esse é o pressuposto. Respondendo um pouco, então, de um modo não tão linear, é que a questão que se coloca aqui é sempre a condição de passividade do homem. O homem passivo, o homem que é determinado de fora, necessariamente cria uma região intencional para se defender inclusive da incapacidade de criar as próprias condições existenciais. Então ele tem de criar barreiras, seguranças e ao mesmo tempo atitudes que extraiam vantagem da utilidade da ação do outro. Criar uma intencionalidade no outro. Desse ponto de vista, são necessários a lei e o Estado. Sem lei e sem Estado essa sociedade simplesmente se aniquilaria. Mas estou aqui fazendo uma diferença. Há um pressuposto para que o Estado seja uma necessidade, e eu não estou dizendo que tenha que se viver sem Estado, não é essa a questão, a questão é: nós podemos? E uma outra coisa é: se podemos, quem pode? Eu? O outro? Todos? Existe um exemplo muito claro que é o de Moisés. Ao criar sua tábua de valores – os dez mandamentos – sentia que sem aquilo o povo judeu se dispersaria e haveria simplesmente um aniquilamento daquela sociedade. Então, aquelas leis, aquele Estado criado ali formalmente através desses valores religiosos, eram necessárias para a unidade daquele povo, para a sua sobrevivência. Então podemos observar aqui que o Estado não é bom e nem mau. Ele tem um uso. Evidentemente às vezes o poder se confunde com o Estado e às vezes não, introduzindo já um pouco na segunda questão.
Mas voltando à questão do Samuel, o que é fundamental é a gente saber se podemos encontrar uma natureza ou, até esquecendo o nome natureza, vamos usar o nome realidade, uma realidade em nós que nos mantêm vivos, que nos sustenta e nos condiciona e nos modifica, será que somos capazes de encontrar essa realidade? E se esta realidade é de fato uma realidade, filosoficamente seria inconcebível que ela não fosse auto-sustentável. Então esta é uma questão filosófica que eu coloco aqui. E outra questão: somos capazes de entrar em contato direto com essa alma, com essa realidade? E o que seria isso? É o que eu chamo de dimensão afirmativa. Se a gente é capaz de entrar em contato com isso, não é possível que na essência da natureza esteja inscrito o mal e a intenção que vai destruir o outro, porque a natureza é essencialmente afirmativa, senão ela não se sustentaria. A dialética só acontece num segundo plano. A natureza não é dialética. Pode ser uma questão polêmica, eu sei, o próprio Engels foi o introdutor, junto com Marx, da questão do materialismo dialético, mas o que é essencial é que há uma dimensão, sem a qual a natureza não se sustentaria se não fosse afirmativa primeiramente. Então, a negação tem estatuto secundário em relação à afirmação. Essa é a questão: é uma questão spinozista. Spinoza é que vai trazer esta questão muito bem e Hegel vai fazer uma crítica a Spinoza, dizendo que Spinoza é capaz de conceber o negativo. Mas o que Spinoza está dizendo é uma outra coisa: ele está dizendo que o estatuto da afirmação não se equipara ao estatuto da negação. A negação não é um ser, é uma maneira de ser. A negação é uma função da afirmação. Então, na medida em que a gente encontra essa dimensão, não é admissível, desse ponto de vista, que haja uma insustentabilidade ou uma dívida existencial, uma incapacidade existencial. Existe aí uma plenitude ou um encontro com a plenitude com uma positividade. E se é plenitude, a plenitude jamais destrói o que não pode ser destruído. Ou seja, ela destrói apenas aquilo que emperra a passagem da vida. Mas o que emperra a passagem da vida é apenas um artifício necessário a uma certa condição. Aquilo era uma convenção apenas. E as convenções, esses produtos, não sobrevivem. O que sobrevive? A capacidade de produzir. Nenhum produto sobrevive a não ser como resultado. O problema é que a vida separada do que pode ela se apega a conservação do próprio produto. E uma vez que você age e o efeito da sua ação é a destruição de um produto, acredita-se que isso é fonte do mal e da discórdia.
É uma questão sutil e difícil mas é necessário entrar nesse nível de abordagem, sem o qual é impossível entrar nessa questão.
Mas o que eu te digo, Samuel, é o seguinte: mesmo que não seja possível atingir uma sociedade sem Estado, existem dimensões na natureza que são capazes de atingir isso. E mais, inclusive de redimir o Estado da sua necessidade. O Estado é necessário a partir de um ponto de vista; a lei necessária a partir de um ponto de vista; a moral é necessária a partir de um ponto de vista; ou da religião, etc. sempre tem algo de necessário. Tudo tem uma função que pode ser de crescimento ou de conservação. Então é disso que se trata.
Não sei se respondi mais ou menos, mas pelo tempo que tenho, senão poderia desenvolver mais. Agora vou entrar nas questões mais ‘cabeludas’ propostas pela Nair.
O poder é todo tecido de relações. Até citei Foucault, que trouxe uma atenuação ao dizer que o poder é difuso. Ele é exercido, ele não ocupa um lugar fora. Ele não é um lugar fora.
O poder só existe através de nós e sobre nós. O poder então é exercido, é funcional e não uma entidade. Ele é uma condição funcional, através desse tecido, do que o próprio Foucault chama de diagrama. Existe um diagrama de forças que atravessa todos os corpos e discursos, sem o qual o poder não se estabelece.
Então há uma espécie de micropoder que constitui também a dimensão do macropoder, que pode usar o Estado enquanto uma instituição. Existe, então, o poder exercido através do Estado, mas o Estado pode ser exercido do ponto de vista da potência. E esse foi o desafio que eu lancei aqui.
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